“Eu, Fellini” (editora Record, 1995) resume o que Federico Fellini contou a Charlotte Chandler, no decorrer dos 14 anos que o conheceu – da primavera de 1980 em Roma até o outono de 1993, poucas semanas antes de sua morte.
Segundo Charlotte, eles conversavam, com freqüência, durante a refeição, em um café ou restaurante, ou no carro em um passeio através de Roma – situações que ele amava e que o estimulavam a falar.
Para Fellini, um ser humano continua vivo enquanto está cercado por outros, com os quais compartilha recordações e que se preocupam com ele.
Eis um “aperitivo” de “Eu, Fellini”(*):
... Eu não poderia ser diferente do que sou. Se há alguma coisa que sei, é isso.
Cada um vive em seu mundo de fantasia, mas isso não está claro para a maioria dos homens. Nenhum de nós vê o mundo tal como ele é. Cada ser humano qualifica as suas próprias fantasias bem pessoais como verdade. Mas sei que vivo em um mundo de fantasias. Mas também prefiro que seja assim e me irrito com tudo o que perturba minha visão.
... Muitas pessoas choram por dentro, muitas riem por dentro. Muitas fazem as duas coisas. Sempre guardei meus sentimentos para mim mesmo, com ciúme. Gosto de dividir alegria e risos com os outros, porém jamais tristeza ou medo.
... Ficar sozinho significa ser você mesmo, por completo. A pessoa pode desenvolver-se livremente, sem ter de se submeter a coações de estranhos. Ficar sozinho consigo é algo especial, e ser capaz disso, algo mais especial ainda. Sempre tive inveja das pessoas que conseguem ficar bem sozinhas, porque elas dispõem de reservas internas que lhes garantem independência e liberdade. Muitas pessoas afirmam querer essa liberdade, mas quase todos a temem. Elas a temem mais do que tudo na vida. Se ficam sozinhas, mesmo que por alguns minutos apenas, procuram com os olhos alguma coisa que possa preencher seu vazio. Temem o silêncio, aquele silêncio em que se está sozinho com os próprios pensamentos, o infinito monólogo interior. Nesses momentos, é preciso que se goste, de fato, da própria companhia. A vantagem é: a pessoa não precisa violentar-se, nem se ajustar a idéias estranhas apenas por querer agradar...
... Os bonecos de minha infância pertencem às minhas recordações mais intensas e ainda hoje estão mais próximos de mim do que as pessoas que povoaram aqueles primeiros anos. Existe uma explicação simples para isso: na época, eles eram mais próximos de mim do que as pessoas reais – por que não deveriam estar mais próximos de mim, hoje, na memória?
Eu mesmo projetei muitas figuras para meu teatro de marionetes. Eram feitas de papelão e cabeças de gesso. Eu tinha mais ou menos nove anos de idade quando comecei a fazer bonecos e a apresentá-os a um público. Um de nossos vizinhos era escultor e se mostrava muito elogioso em relação a meus bonecos. Elogiava o meu talento, o que me dava um tremendo estímulo. Não existe nada mais precioso na vida do que um estímulo, que se tenha vivenciado muito cedo, sobretudo quando o elogio se relaciona a algo definido. Ele me ensinou a modelar as cabeças em gesso. Eu fazia apresentações e representava todos os papéis. Acho que na época eu já desenvolvia o meu estilo de direção posterior: representar cada papel para cada ator, demonstrar na prática a personagem para cada um. Claro que eu mesmo escrevia minhas peças.
... Quando tinha sete anos, meus pais me levaram ao circo. Os palhaços me causaram um medo terrível. Não entendi se eram animais ou espíritos e não os achei nem um pouco engraçados. Mas tive um sentimento estranho: a sensação de que me esperavam por lá.
Naquela noite, e em muitas noites nos anos seguintes, sonhei com o circo. Nesses sonhos de circo, tinha a sensação de enfim saber onde era o meu lugar. Era comum um elefante aparecer nesses sonhos. Ainda não sabia que o meu futuro era o circo: o circo-cinema.
Dois heróis influenciaram a minha infância. A heroína foi minha avó. O herói foi um palhaço.
Na manhã após minha ida ao circo, vi um dos palhaços no chafariz da praça, e ele estava vestido exatamente como na noite anterior. Isso me pareceu bastante natural, pois eu pensava que ele sempre usava sua roupa de palhaço.
... A Igreja Católica sempre amaldiçoou o sexo, quando ele é praticado por prazer e não apenas para a procriação. Faz parte da postura geral da Igreja, que condena todo tipo de alegria na vida, bem como a liberdade e a individualidade.
... Quando se vê um cachorro agarrar na corrida uma bola no ar para trazê-la de volta, orgulhoso, compreende-se o que se deve saber sobre a natureza do cão e também sobre a do homem. O cão fica contente e feliz porque domina uma habilidade especial, que agrada e pela qual é elogiado. Ela converte-se, para ele, em carinhos gostosos e saborosas bolachas para cães. Cada um de nós está em busca da habilidade especial na vida, pela qual se recebam aplausos. Feliz daquele que a encontra. Eu me tornei diretor de cinema...”
Segundo Billy Wilder, responsável pelo prefácio da obra “Eu, Fellini”, os filmes de Fellini são inconfundíveis. Ele tinha um estilo bastante peculiar. Existem coisas que não se pode aprender. Chega-se ao mundo com elas. Na vida, Fellini também era inconfundível. Vivia em seu próprio mundo.
Quando morre um ser humano como Fellini, diz Wilder, não podemos nos refugiar na retórica, porque nenhuma flor de retórica se ajusta a ele. Uma grande quantidade de pessoas vai estudar seus filmes, vai analisá-los e tentar copiá-los. E talvez algum dia se diga de alguma pessoa: “Seu filme é como um filme de Fellini.” Mas ele poderá ser apenas como um filme de Fellini. É nisso que se reconhecem as coisas realmente boas: não podem ser repetidas, finaliza Wilder.
______________
(*) Esse livro caiu em minhas mãos apenas em um dia de final de semana (6 de setembro), através de minha filha, que o havia emprestado da biblioteca da FAAP (Fundação Armando Álvares Penteado), São Paulo (SP), onde cursa pós-graduação em “Crítica de Cinema”. Ela trouxe para eu folheá-lo, por reconhecê-lo com a cara do blog do pai. Tentou adquiri-lo em algumas livrarias, mas, ao que tudo indica, encontra-se esgotado. Lamento, por se tratar de uma preciosidade. Quem sabe se, em algum desses sebos tradicionais, a gente não possa encontrá-lo? Tom
Segundo Charlotte, eles conversavam, com freqüência, durante a refeição, em um café ou restaurante, ou no carro em um passeio através de Roma – situações que ele amava e que o estimulavam a falar.
Para Fellini, um ser humano continua vivo enquanto está cercado por outros, com os quais compartilha recordações e que se preocupam com ele.
Eis um “aperitivo” de “Eu, Fellini”(*):
... Eu não poderia ser diferente do que sou. Se há alguma coisa que sei, é isso.
Cada um vive em seu mundo de fantasia, mas isso não está claro para a maioria dos homens. Nenhum de nós vê o mundo tal como ele é. Cada ser humano qualifica as suas próprias fantasias bem pessoais como verdade. Mas sei que vivo em um mundo de fantasias. Mas também prefiro que seja assim e me irrito com tudo o que perturba minha visão.
... Muitas pessoas choram por dentro, muitas riem por dentro. Muitas fazem as duas coisas. Sempre guardei meus sentimentos para mim mesmo, com ciúme. Gosto de dividir alegria e risos com os outros, porém jamais tristeza ou medo.
... Ficar sozinho significa ser você mesmo, por completo. A pessoa pode desenvolver-se livremente, sem ter de se submeter a coações de estranhos. Ficar sozinho consigo é algo especial, e ser capaz disso, algo mais especial ainda. Sempre tive inveja das pessoas que conseguem ficar bem sozinhas, porque elas dispõem de reservas internas que lhes garantem independência e liberdade. Muitas pessoas afirmam querer essa liberdade, mas quase todos a temem. Elas a temem mais do que tudo na vida. Se ficam sozinhas, mesmo que por alguns minutos apenas, procuram com os olhos alguma coisa que possa preencher seu vazio. Temem o silêncio, aquele silêncio em que se está sozinho com os próprios pensamentos, o infinito monólogo interior. Nesses momentos, é preciso que se goste, de fato, da própria companhia. A vantagem é: a pessoa não precisa violentar-se, nem se ajustar a idéias estranhas apenas por querer agradar...
... Os bonecos de minha infância pertencem às minhas recordações mais intensas e ainda hoje estão mais próximos de mim do que as pessoas que povoaram aqueles primeiros anos. Existe uma explicação simples para isso: na época, eles eram mais próximos de mim do que as pessoas reais – por que não deveriam estar mais próximos de mim, hoje, na memória?
Eu mesmo projetei muitas figuras para meu teatro de marionetes. Eram feitas de papelão e cabeças de gesso. Eu tinha mais ou menos nove anos de idade quando comecei a fazer bonecos e a apresentá-os a um público. Um de nossos vizinhos era escultor e se mostrava muito elogioso em relação a meus bonecos. Elogiava o meu talento, o que me dava um tremendo estímulo. Não existe nada mais precioso na vida do que um estímulo, que se tenha vivenciado muito cedo, sobretudo quando o elogio se relaciona a algo definido. Ele me ensinou a modelar as cabeças em gesso. Eu fazia apresentações e representava todos os papéis. Acho que na época eu já desenvolvia o meu estilo de direção posterior: representar cada papel para cada ator, demonstrar na prática a personagem para cada um. Claro que eu mesmo escrevia minhas peças.
... Quando tinha sete anos, meus pais me levaram ao circo. Os palhaços me causaram um medo terrível. Não entendi se eram animais ou espíritos e não os achei nem um pouco engraçados. Mas tive um sentimento estranho: a sensação de que me esperavam por lá.
Naquela noite, e em muitas noites nos anos seguintes, sonhei com o circo. Nesses sonhos de circo, tinha a sensação de enfim saber onde era o meu lugar. Era comum um elefante aparecer nesses sonhos. Ainda não sabia que o meu futuro era o circo: o circo-cinema.
Dois heróis influenciaram a minha infância. A heroína foi minha avó. O herói foi um palhaço.
Na manhã após minha ida ao circo, vi um dos palhaços no chafariz da praça, e ele estava vestido exatamente como na noite anterior. Isso me pareceu bastante natural, pois eu pensava que ele sempre usava sua roupa de palhaço.
... A Igreja Católica sempre amaldiçoou o sexo, quando ele é praticado por prazer e não apenas para a procriação. Faz parte da postura geral da Igreja, que condena todo tipo de alegria na vida, bem como a liberdade e a individualidade.
... Quando se vê um cachorro agarrar na corrida uma bola no ar para trazê-la de volta, orgulhoso, compreende-se o que se deve saber sobre a natureza do cão e também sobre a do homem. O cão fica contente e feliz porque domina uma habilidade especial, que agrada e pela qual é elogiado. Ela converte-se, para ele, em carinhos gostosos e saborosas bolachas para cães. Cada um de nós está em busca da habilidade especial na vida, pela qual se recebam aplausos. Feliz daquele que a encontra. Eu me tornei diretor de cinema...”
Segundo Billy Wilder, responsável pelo prefácio da obra “Eu, Fellini”, os filmes de Fellini são inconfundíveis. Ele tinha um estilo bastante peculiar. Existem coisas que não se pode aprender. Chega-se ao mundo com elas. Na vida, Fellini também era inconfundível. Vivia em seu próprio mundo.
Quando morre um ser humano como Fellini, diz Wilder, não podemos nos refugiar na retórica, porque nenhuma flor de retórica se ajusta a ele. Uma grande quantidade de pessoas vai estudar seus filmes, vai analisá-los e tentar copiá-los. E talvez algum dia se diga de alguma pessoa: “Seu filme é como um filme de Fellini.” Mas ele poderá ser apenas como um filme de Fellini. É nisso que se reconhecem as coisas realmente boas: não podem ser repetidas, finaliza Wilder.
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(*) Esse livro caiu em minhas mãos apenas em um dia de final de semana (6 de setembro), através de minha filha, que o havia emprestado da biblioteca da FAAP (Fundação Armando Álvares Penteado), São Paulo (SP), onde cursa pós-graduação em “Crítica de Cinema”. Ela trouxe para eu folheá-lo, por reconhecê-lo com a cara do blog do pai. Tentou adquiri-lo em algumas livrarias, mas, ao que tudo indica, encontra-se esgotado. Lamento, por se tratar de uma preciosidade. Quem sabe se, em algum desses sebos tradicionais, a gente não possa encontrá-lo? Tom
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