sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

SENTIR-SE CULPADO?...

“Deveríamos dar ao caos um lugar de destaque pelo menos uma vez por ano, designando ocasiões em que podemos ficar brevemente isentos das duas maiores pressões da vida adulta secular: ser racional e fiel”

UM BOM COMEÇO para este artigo, buscado em www.luzespirita.net, é a manifestação da leitora Aurora Costa: “Em alguns momentos da minha vida, apesar da minha religiosidade, debato-me com alguns pensamentos menos bons, que estão relacionados com alguns complexos de culpa e do não me perdoar por atos menos bons”.

Alain de Botton, www.paulopes.com.br
O capítulo Comunidade, da obra “Religião para ateus”, do suíço Alain de Botton, 42, leva-me a algo que, vez por outra, também é objeto de preocupação minha: pautado na orientação filosófico-espiritual que rege a minha vida, há momentos em que me penitencio por acreditar que, talvez, algum comportamento possa afrontar algum princípio ou diretriz da corrente espiritual que adoto. Então, em certas ocasiões, ensaio uma espécie de culpa. Mas nunca deixo de refletir sobre se tal comportamento é realmente condenável.

Em “Religião para ateus”, provocante, original e, segundo o prefácio, indicado para quem não acredita em milagres ou espíritos, o autor defende que a sociedade contemporânea pode fazer uso das ferramentas empregadas pelas religiões para mitigar alguns dos males mais persistentes e negligenciados da vida secular. Ao descartar os dogmas e o sobrenatural, Alain de Botton propõe o resgate de uma sabedoria que pertence a toda a humanidade, inclusive aos mais céticos.

“Frequentemente, é quando saciamos a fome do corpo que estamos mais prontos para dirigir nossa mente às necessidades dos outros”, compreendiam os antigos cristãos, conforme escreve Botton.

“Quando Sócrates declarou para o mundo que ninguém pratica deliberadamente o mal, que todo mundo age de acordo com o que considera bom, o que realmente ele quis dizer? Talvez ele tenha querido dizer que mesmo a pessoa mais desprezível do mundo ainda é um ser humano que tem duas naturezas – uma parte que procura o bem e outra que é levada a obedecer impulsos de medo, ânsia ou violência pessoal. O homem mau é aquele que é completamente incapaz de perceber a contradição entre as suas duas naturezas, em quem nunca existiu e nunca poderá existir um canal para a voz da consciência”, relata o filósofo Jacob Needleman em “Por que não conseguimos ser bons?”.

Alain de Botton explica: as religiões nos ensinam a ser educados, a honrar uns aos outros e a ser fiéis e sóbrios, mas também sabem que, se não nos permitirem o contrário de vez em quando, quebrarão nosso espírito. “Em seus momentos mais sofisticados, as religiões aceitam a dívida que bondade, fé e doçura têm com seus opostos”, diz.

Em “Emoções”, escreve Osho: “Mas todas as religiões corrompem a mente das pessoas, porque elas não as ensinam como observar, como compreender; em vez disso, elas oferecem conclusões – a raiva é ruim. E, no momento em que condena alguma coisa, você já se colocou na posição de juiz. Você já julgou. Não pode ficar mais consciente. A consciência requer que a pessoa fique num estado de não-julgamento. E todas as religiões ensinam as pessoas a fazer julgamentos; isto é bom, aquilo é ruim; isto é pecado, aquilo é virtude – essa é a asneira que, durante séculos, as religiões têm colocado na cabeça das pessoas. Por isso que, assim que vê alguma coisa, você já faz, dentro de você, um julgamento em relação àquilo. Você não consegue simplesmente ver a coisa, não consegue ser simplesmente um espelho, sem dizer nada. A compreensão só acontece se você se torna um espelho, um espelho de tudo que se passa na sua mente”.

No entanto, a mente é uma lente defeituosa, observa Arthur Jeon em “Calma no caos”. Para o escritor, muitas vezes ela chega a conclusões apressadas baseadas no que foi condicionado a ver, não no que realmente ocorre. “Em cada situação da vida costumamos despejar nossa experiência e julgamento subjetivos. O resultado é, em geral, uma obra de ficção, e não a realidade”. E isso é válido para as nossas “culpas” e aparentes choques entre o que escolhemos acreditar, o que gostaríamos de ser e o que somos (pelo menos momentaneamente).

O que é responsabilidade?, indaga Deepak Chopra em “Criando prosperidade - As sete leis espirituais do sucesso”. Para ele, responsabilidade é não ficar culpando alguém, ou alguma coisa, pela situação, muito menos a si mesmo. “Aceitando a circunstância, o fato, o problema como se apresentam no momento, a responsabilidade passa a ser a capacidade de ter uma resposta criativa para aquela situação como ela se apresenta no momento. Todos os problemas contêm em si as sementes da oportunidade. A consciência disso permite transformar este momento numa situação ou em algo melhor”.

Pois, como revela Luli Radfahrer, em seu artigo “Marshall MacLuhan e você” (Folha de S. Paulo, 18 de maio de 2011), “Por mais que o desconhecido e o não filtrado incomode, é preciso ter a disposição para compreendê-lo”.

FESTA DOS LOUCOS

“Um monge franciscano e um Rei Momo vivem dentro de mim, revezando-se no uso e abuso deste corpo, como seu eu fosse uma casa de cômodos. (Ou de incômodos, dependendo do que os inquilinos façam aqui dentro)”, narra Antonio Prata na crônica “Pé na jaca x pé no talco” (Folha de S. Paulo de 22/2/2012).

Diz o cronista: “Meu lado certinho gosta de granola com iogurte desnatado no café da manhã e comprou, recentemente, um aparelho que auxilia nos exercícios abdominais. O Rei Momo gargalha, diz que se recusa a compactuar com essa época covarde que, em vez do mundo, quer mudar a taxa de triglicérides – e dá mais uma dentada num naco de salame”.

Segundo Antonio Prata, “o ideal de felicidade do monge é, depois de correr na esteira e tomar banho, sentar em sua poltrona: uma garrafinha de água com gás numa mão, um livro na outra. O ideal de felicidade do pândego é sair sem rumo, encontrar um amigo num bar, ir dali comer uma bisteca no Sujinho e acabar numa roda de samba, num quintal desconhecido, fazendo carinho com o pé num vira-lata e descendo a mão num tamborim. (O Rei Momo já foi avisado diversas vezes pelo monge para não misturar álcool e instrumentos de percussão, mas cadê que ele escuta?)”, escreve o cronista.

Não há como a gente não se identificar de alguma forma com a beleza dessa crônica. Para finalizar, escreve Prata: “Como podem esses antípodas habitar o mesmo corpo? Não podem, meus caros, por isso vivo sob fogo cruzado, recebendo no peito as balas e bombas dos exércitos inimigos. Veja hoje,  por exemplo: nos últimos cinco dias, o folião reinou incólume e agora, enquanto rolo na cama, nesta gelatinosa Quarta-Feira de Cinzas, me abandona nas mãos do pontífice, que se aproxima zunindo seu chicote. Não fui eu, seu moço, foi ele, eu digo, escondendo-me sob os lençóis e já prevendo uma longa temporada de granola, esteira e água com gás”.

O cristianismo medieval certamente compreendia essa dicotomia. “Durante a maior parte do ano, pregava solenidade, ordem, moderação, camaradagem, sinceridade, amor a Deus e decoro sexual, e, então, na noite de ano-novo, abria as portas da psique coletiva e dava início ao ‘festum fatuorum’, a “Festa dos Loucos’. Durante quatro dias, o mundo ficava de cabeça para baixo: membros do clero jogavam objetos em cima do altar, zurravam como burros em vez de dizer ‘amém’, faziam competições de bebedeira na nave e sermões de gracejo, baseados em paródias do Evangelho”, escreve Alain de Botton.

Após beber canecas de cerveja, eles seguravam os livros de ponta-cabeça, faziam orações para vegetais e urinavam de cima das torres dos sinos, comenta Botton.

“Mas nada disso era considerado apenas uma piada. Era sagrado, uma ‘paródia sacra’ idealizada para garantir que durante todo o resto do ano as coisas permanecessem em ordem. Em 1445, a Faculdade de Teologia de Paris explicou aos bispos da França que a ‘Festa dos Loucos’ era um evento necessário no calendário cristão, ‘para que a insensatez, que é nossa segunda natureza, e inerente ao homem, possa se dissipar livremente pelo menos uma vez ao ano. Barris de vinho de tempos em tempos estouram se não os abrirmos para entrar um pouco de ar. Todos nós, homens, somos barris reunidos inadequadamente, e é por isso que permitimos a tolice em certos dias: para que, no fim, possamos regressar com maior fervor ao serviço de Deus”, conta o autor.

Imagem: Gilvan Samico
www.dasartes.com
A moral que devemos tirar, conforme observa Alain de Botton, é que, se desejamos comunidades que funcionem bem, não podemos ser ingênuos quanto à nossa natureza. “Deveríamos dar ao caos um lugar de destaque pelo menos uma vez por ano, designando ocasiões em que podemos ficar brevemente isentos das duas maiores pressões da vida adulta secular: ser racional e fiel”.

Aprendemos com a religião mais que os encantos da comunidade, diz o autor. “Aprendemos também que uma boa comunidade aceita o que há em nós que, na verdade, não deseja a comunidade – ou, ao menos, não pode tolerá-la o tempo inteiro em suas formas ordenadas. Se temos nossas festas do amor, também devemos ter nossas festas dos loucos”, complementa.
Apesar dos momentâneos desvios que vez por outra sofremos, devemos lembrar do que disse Chade-Meng Tan, engenheiro que está há mais de dez anos no Google: “O presente, o aqui, o agora, esse é o máximo de vida que posso ter. Vivo cada momento plenamente, em gentileza, em paz, sem arrependimento”. Erros devem suscitar ponderações.

Para finalizar, concordo com o que pensa o amigo Roberto da Graça Lopes sobre o assunto: “Se me esforço para seguir uma corrente espiritual (ou apenas filosófica) e dar atenção em meu dia a dia a seus princípios elevados, devo aceitar que tais princípios sejam sentenças contra o louco que também habita em mim? É óbvio que não. Culpas dificultam reassumir o rumo certo. Devo simplesmente retomar o caminho no transcorrer do qual, paulatinamente, conseguirei depurar o louco que por vezes me domina, mesmo que para isso ainda se passem muitos carnavais. Afinal, só é definitivo em mim aquilo que eu aceitar que assim o seja”.

Revisão do texto: Márcia Navarro Cipólli, navarro98@gmail.com

Um comentário:

  1. A frase "ninguém pratica deliberadamente o mal, que todo mundo age de acordo com o que considera bom" é muito verdadeira e traz um melhor entendimento do mundo. Às vezes entender a motivação das pessoas para qualquer tipo de ação é uma maneira de entender e conseguir conviver com o que julgamos terríveis injustiças, e nos deixam indefesos.

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