Ocorre-me a crônica “Contra os colunistas” (Folha de S.Paulo, Ilustrada, 2/9/2008), onde João Pereira Coutinho, inspirado em universitários que lhe perguntam: Como ser colunista?, escreve:
... “Quando desligamos o laptop, a cabeça continua a pleno vapor, escrevendo crônicas imaginárias ao mínimo sinal de alarme. A vida não é a vida. É sempre pretexto. É sempre contexto. É sempre texto...
... E tudo isso para quê? Eu digo-vos para quê: para sermos lidos em cinco minutos com o café da manhã; para despertamos risos, tédios, concórdias ou discórdias em gente anônima que jamais conheceremos; e, com alguma sorte, para acabarmos o dia abandonados e esquecidos, forrando o banheiro do gato...”
E então, João Coutinho, estou aqui tentando contextualizar essa sua crônica com o que sintetizei de “Na memória dos outros”, de Dulce Critelli (Folha, Equilíbrio, 4/9/2008):
... “Encontrei, depois de muitos anos, uma antiga colega de faculdade. Não a reconheci quando veio ao meu encontro. O rosto era familiar, olhar e voz eram conhecidos, mas demorei um pouco para me lembrar.
Como meu nome estava pronto na sua boca, e o seu me faltava, usei pronomes genéricos até que ela e o nome me voltassem à mente. Alívio. Não há algo pior do que não se lembrar de quem se lembra da gente.
A memória do outro tem poder infinito na confirmação da nossa existência! É nela que persistimos durante a vida e perduramos depois de partir deste mundo.
A memória dos outros é um arquivo do nosso passado, de atos realizados e palavras ditas. Mas atos e palavras que podem se projetar no futuro. Se os outros não mudarem sua memória de quem somos, estaremos condenados a permanecer sendo os mesmos, imutáveis.
A memória dos outros é senhora do conceito da pessoa que somos. Não será esse o poder que os outros exercem sobre nós e a razão dos esforços para causar boa impressão?
Talvez esteja aí o motivo do incômodo de quando encontramos antigos conhecidos e a conversa não corre. De quando dizemos que não temos mais interesses comuns. Sentimo-nos estranhos à procura de algo, entre nós, esquecido.
A memória precisa de tempo para atualizar vínculos. Não só para recobrar acontecimentos, mas para restaurar os sentimentos que os acompanharam.
Como a memória não conserva consigo apenas fatos, mas versões, cada cena registrada é a síntese de uma história.
Lembrar, portanto, é descongelar essas sínteses. Restaurar experiências. Recuperar histórias. No esquecimento, os outros estão perdidos para nós, e nós, perdidos para eles. Quando esquecemos o que nos unia aos outros, parte da nossa existência escoa de nós.
Embora Hannah Arendt afirme que nós, homens, somos as únicas criaturas que podem interferir no modo como queremos aparecer para os outros, essa interferência tem limites e não passa de um esforço incerto. O resultado escapa de nossas mãos: está na memória que os outros conservam de nós.
Habitamos a memória dos outros em retratos cuja pose não escolhemos. Apesar de todo o empenho, é improvável que os outros tenham registrado só nossos melhores momentos. Eles podem preservar o rosto de que não gostamos, podem nos fazer maiores ou menores do que somos. Apropriando-se de nós, a memória dos outros tem o poder de nos tornar aqueles que não somos ou que acreditamos não ser.
Diante da memória dos outros, perco a posse de mim mesma. Ela é o único lugar onde, irremediavelmente, meu destino corre à minha revelia.”
Eis aqui a forma que encontro de revitalizar textos especiais, daqueles que levam à reflexão e ao autoconhecimento, saem diariamente em jornais e não perdem a atualidade, mas, entretanto, lamentavelmente, passam despercebidos da maioria dos leitores.
__________
Dulce Critelli é terapeuta existencial e professora de filosofia da PUC-SP
... “Quando desligamos o laptop, a cabeça continua a pleno vapor, escrevendo crônicas imaginárias ao mínimo sinal de alarme. A vida não é a vida. É sempre pretexto. É sempre contexto. É sempre texto...
... E tudo isso para quê? Eu digo-vos para quê: para sermos lidos em cinco minutos com o café da manhã; para despertamos risos, tédios, concórdias ou discórdias em gente anônima que jamais conheceremos; e, com alguma sorte, para acabarmos o dia abandonados e esquecidos, forrando o banheiro do gato...”
E então, João Coutinho, estou aqui tentando contextualizar essa sua crônica com o que sintetizei de “Na memória dos outros”, de Dulce Critelli (Folha, Equilíbrio, 4/9/2008):
... “Encontrei, depois de muitos anos, uma antiga colega de faculdade. Não a reconheci quando veio ao meu encontro. O rosto era familiar, olhar e voz eram conhecidos, mas demorei um pouco para me lembrar.
Como meu nome estava pronto na sua boca, e o seu me faltava, usei pronomes genéricos até que ela e o nome me voltassem à mente. Alívio. Não há algo pior do que não se lembrar de quem se lembra da gente.
A memória do outro tem poder infinito na confirmação da nossa existência! É nela que persistimos durante a vida e perduramos depois de partir deste mundo.
A memória dos outros é um arquivo do nosso passado, de atos realizados e palavras ditas. Mas atos e palavras que podem se projetar no futuro. Se os outros não mudarem sua memória de quem somos, estaremos condenados a permanecer sendo os mesmos, imutáveis.
A memória dos outros é senhora do conceito da pessoa que somos. Não será esse o poder que os outros exercem sobre nós e a razão dos esforços para causar boa impressão?
Talvez esteja aí o motivo do incômodo de quando encontramos antigos conhecidos e a conversa não corre. De quando dizemos que não temos mais interesses comuns. Sentimo-nos estranhos à procura de algo, entre nós, esquecido.
A memória precisa de tempo para atualizar vínculos. Não só para recobrar acontecimentos, mas para restaurar os sentimentos que os acompanharam.
Como a memória não conserva consigo apenas fatos, mas versões, cada cena registrada é a síntese de uma história.
Lembrar, portanto, é descongelar essas sínteses. Restaurar experiências. Recuperar histórias. No esquecimento, os outros estão perdidos para nós, e nós, perdidos para eles. Quando esquecemos o que nos unia aos outros, parte da nossa existência escoa de nós.
Embora Hannah Arendt afirme que nós, homens, somos as únicas criaturas que podem interferir no modo como queremos aparecer para os outros, essa interferência tem limites e não passa de um esforço incerto. O resultado escapa de nossas mãos: está na memória que os outros conservam de nós.
Habitamos a memória dos outros em retratos cuja pose não escolhemos. Apesar de todo o empenho, é improvável que os outros tenham registrado só nossos melhores momentos. Eles podem preservar o rosto de que não gostamos, podem nos fazer maiores ou menores do que somos. Apropriando-se de nós, a memória dos outros tem o poder de nos tornar aqueles que não somos ou que acreditamos não ser.
Diante da memória dos outros, perco a posse de mim mesma. Ela é o único lugar onde, irremediavelmente, meu destino corre à minha revelia.”
Eis aqui a forma que encontro de revitalizar textos especiais, daqueles que levam à reflexão e ao autoconhecimento, saem diariamente em jornais e não perdem a atualidade, mas, entretanto, lamentavelmente, passam despercebidos da maioria dos leitores.
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Dulce Critelli é terapeuta existencial e professora de filosofia da PUC-SP
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