quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Enchentes em Santa Catarina (SC): para refletir sobre a solidariedade

A internet tornou-se também um espaço para a expressão de muita riqueza interior de pessoas que não desejam identificar-se. Existem anônimos lutando por pequenas e grandes causas. Na verdade, são eles que formam o grande exército transformador. Sim, porque boas idéias, em bons textos com autoria definida, são reproduzidas por anônimos à sociedade, por meio de conselhos pessoais, aulas em escolas de diferentes níveis, conversas em botequim, bate-papo no metrô até com desconhecido etc. Há anônimos trabalhando em Ongs, igrejas..., em todo quarteirão da cidade. E que oferecem material para reflexão como este, que recebi de um amigo, por e-mail. Trata-se de um texto construído por três anônimos.


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Leiam com carinho e rezem para ficarmos livres desses sofrimentos e para que Deus ilumine os que ficaram para suportar as perdas humanas, principalmente, e materiais. A mensagem foi escrita por um morador da área atingida pela calamidade que presenciamos através de jornais, televisão, internet e outros meios de comunicação. 

Fora o sensacionalismo de alguns repórteres, as entrevistas com os atingidos foram e continuam sendo muito tocantes. É incrível como, com toda perda, as vítimas mantenham confiança na rápida reconstrução. Elas pensam positivamente, o que, sem dúvida, dá força para suportar tanta provação.


A nós, fora a ajuda material, cabe orar para que os desejos desse povo sejam atendidos em todos os sentidos. E que a água que nos batiza, alimenta e lava sirva também para vitalizar o início de um novo ciclo interior.                                                     

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(depoimento de um morador)

Meus amigos:

Hoje, 27 de novembro de 2008, o Sol saiu e conseguimos retornar ao trabalho. A despeito de brincadeiras e comentários espirituosos normais sobre esta "folga forçada", a verdade é que nunca me senti tão feliz em voltar a trabalhar, não somente pelo trabalho e pela própria tranqüilidade de ter onde ganhar o pão, mas também pelo sinal de que a vida está voltando ao normal aqui na nossa Itajaí.


As fotos que circulam na internet e os telejornais já nos dão as imagens claras de tudo o que aconteceu,  então não vou me estender descrevendo as cenas vistas nestes dias, porque todos vocês já sabem de cor.  Eu quero mesmo falar é sobre lições aprendidas.


Por mais que teorias e leituras mil nos falem sobre isso, ainda é surpreendente presenciar como uma tragédia desse porte pode fazer aflorar no ser humano sentimentos tão nobres e instintos tão  primitivos. As cenas e situações vividas neste final de semana prolongado em Itajaí nos fizeram chorar de alegria, raiva, tristeza e impotência. Fizeram-nos perder a fé no ser humano num segundo, para recuperá-la no instante seguinte. Fizeram-nos ver que sempre alguém se aproveita da desgraça alheia, mas ver também que é mais fácil recomeçar quando todos dão as mãos.

Que aquela entidade superior que cada um acredita (Deus, Alá, Jeová etc.) e da forma que cada um a concebe tenha piedade daqueles:

- que se aproveitaram da situação para fazer saques em supermercados, levando principalmente bebidas e cigarros;
- que saquearam uma farmácia levando medicamentos controlados, equipamentos e cofres e destruindo produtos de primeira necessidade e a estrutura física do local;
- que pediam 5 reais por um litro de água mineral;
- que chegaram a pedir 150 reais por um botijão de gás;
- que foram pedir donativos de água e alimentos nas áreas secas  para vender nas áreas alagadas;
- que foram comer e recolher roupas nos centros de triagem, mesmo não tendo suas casas atingidas;
- que esperaram as pessoas saírem das suas casas para roubar o que restava;
- que fizeram pessoas dormir em telhados e lajes, com frio e fome, para não ter suas casas saqueadas;
- que, por haver algo errado em seu coração, não sentiram preocupação por ninguém;
- que simplesmente fizeram de conta que nada acontecia, por estarem em áreas secas.

Da mesma forma, que essa mesma entidade superior abençôe:

- aqueles que atenderam ao chamado do rádio e se apresentaram, no domingo, no quartel dos bombeiros para auxiliar de alguma forma;
- os donos das lanchinhas de pescarias de fim de semana que, rapidamente, trouxeram seus barquinhos nas carretas e fizeram tanta diferença;
- a equipe da lancha, pessoas sensacionais que parecia que a gente já conhecia na vida;
- os soldados do exército do Paraná e do Rio Grande do Sul;
- os bravos gaúchos, tantas vezes vítimas de nossas brincadeiras, que trouxeram caminhões e caminhões com mantimentos;
- os cadetes da Academia da Polícia Militar que, ainda em formação, se portaram como veteranos;
- os bombeiros e policiais locais que, com tanta paciência, resgataram, orientaram e auxiliaram de todas as formas, muitos deles com as suas próprias casas embaixo das águas;
- os médicos e enfermeiras voluntários;
- os bombeiros do Paraná que trabalharam ombro a ombro com os nossos bombeiros;
- os pilotos de helicópteros da Aeronáutica e Exército que fizeram os resgates nos locais de difícil acesso;
- o pessoal incansável do SAMU (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência) e das ambulâncias em geral que não teve tempo nem para respirar;
- o pessoal do helicóptero da Polícia Militar de São Paulo que mostrou que longo é o braço da solidariedade;
- o pessoal do rádio que manteve a população informada e deu esperança a quem estava isolado em sua casa;
- os estudantes que emprestaram sua força física para carregar e descarregar caminhões nos centros de triagem;
- as pessoas que cozinharam para milhares de estranhos;
- o empresário que não se identificou e entregou mais de mil marmitas no centro de triagem;
- a todos que doaram nem que fosse uma peça de roupa;
- a todos que serviram nem que fosse um copo de água a quem precisava;
- a todos que oraram por todos;
- o Brasil todo que chorou nossos mortos e nossas perdas;
- os novos amigos que fiz no centro de triagem, na segunda-feira;
- a todos aqueles que me ligaram preocupados;
- a todos aqueles que ainda se preocupam com alguém;
- a todos aqueles que fizeram algo, mas que eu não soube ou esqueci.


Há alguns anos, numa grande enchente na Argentina, um anônimo escreveu:

Começar de novo

Eu tinha medo da escuridão,
Até que as noites se fizeram longas e sem luz.
Eu não resistia ao frio facilmente,
Até passar a noite molhado numa laje.
Eu tinha medo dos mortos,
Até ter que dormir num cemitério.
Eu tinha rejeição por quem era de Buenos Aires,
Até que me deram abrigo e alimento.
Eu tinha aversão a Judeus,
Até darem remédios aos meus filhos.
Eu adorava exibir a minha nova jaqueta,
Até dá-la a um garoto com hipotermia.
Eu escolhia cuidadosamente a minha comida,
Até que tive fome.
Eu desconfiava da pele escura,
Até que um braço forte me tirou da água.
Eu achava que tinha visto muita coisa,
Até ver meu povo perambulando sem rumo pelas ruas.
Eu não gostava do cachorro do meu vizinho,
Até naquela noite ouvi-lo ganir até se afogar.
Eu não lembrava dos idosos,
Até participar dos resgates.
Eu não sabia cozinhar,
Até ter na minha frente uma panela, arroz e crianças com fome.
Eu achava que a minha casa era mais importante que as outras,
Até ver todas cobertas pelas águas.
Eu tinha orgulho do meu nome e sobrenome,
Até todos se tornarem anônimos.
Eu não ouvia rádio,
Até ser ele a manter a minha energia.
Eu criticava a bagunça dos estudantes,
Até eles, às centenas, me estenderem suas mãos solidárias.
Eu tinha segurança absoluta de como seriam meus próximos anos,
Agora nem tanto.
Eu vivia numa comunidade com uma classe política,
Mas agora espero que a correnteza tenha levado embora.
Eu não lembrava o nome de todos os estados,
Agora guardo cada um no coração.
Eu não tinha boa memória,
Talvez por isso não lembre de todo mundo,
Mas terei mesmo assim o que me resta de vida para agradecer a todos.
Eu não te conhecia,
Agora você é meu irmão.
Tínhamos um rio,
Agora somos parte dele.
É de manhã, já saiu o sol e não faz tanto frio.
Graças a Deus,
Vamos começar de novo.


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É hora de recomeçar, hora de recomeçar não só materialmente. Talvez seja uma boa oportunidade de renascer, de se reinventar e de crescer como ser humano.

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