Dulce Critelli (**), Folha de S.Paulo, Equilíbrio, 10 de julho de 2008
Não existe forma mais clara de perceber a passagem do tempo do que encontrar pessoas que há muito não se via. Meninos que, agora, são pais e mães. Jovens pais e mães que, agora, são senhores e senhoras. Crianças, de quem a última memória é da
chupeta na boca, falando dos seus trabalhos e dos seus projetos.
Um susto! Foi o que vivi no casamento da filha de uma prima, na semana passada. É claro que sei quantos anos tenho, marcados no meu registro de nascimento e na contabilidade dos calendários.
Há um contraste, na verdade, entre a percepção do envelhecimento e o sentimento de vida jovem que me habita. Estranho sempre que me chamam de senhora ou quando me vejo nos vídeos e nas fotografias.
O espanto com o tempo já sido, já passado, deveria funcionar como um lembrete que nos tirasse da distração de que algum dia sairemos de cena.
Martin Heidegger, filósofo existencial, afirma que o homem é um tempo que se esgota, que se emprega nisto ou naquilo, que se omite, que se retrai ou que se desperdiça.
Talvez, então, não seja só e, justamente, a passagem do tempo o que
nos assombra, mas a possibilidade de termos empregado mal o tempo da nossa existência, que é única e irrepetível. O receio de termos gasto nosso tempo com o que pouco importava, com besteiras, com o que não era do nosso próprio interesse.
Esta é a maior inquietação em ver que o tempo passou: a percepção da inconsciência com que vivemos os acontecimentos da nossa vida e o medo de termos desperdiçado um tempo de ser, tão precioso.
Essa é, também, a razão de eu, muitas vezes, pensando no passado, perguntar-me: onde estive enquanto vivia a minha vida?
(*) síntese do artigo
(**) terapeuta existencial e professora de filosofia da PUC-SP
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Contardo Calligaris, na crônica "Para que servem as ficções?" (Folha de S.Paulo, Ilustrada, 18/1/2007), escreveu: [...] "A vida da gente pode (e talvez deva) ser vivida como uma narração. Não tanto para que ela se transforme num roteiro mirabolante, mas para que nosso cotidiano (por humilde e banal que seja) assuma uma relevância e uma intensidade que o tornem digno de ser vivido".
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