domingo, 24 de fevereiro de 2019

VALOR TERAPÊUTICO DA AMIZADE


Somos inseguros. Há ausência de ‘confiança’ nos relacionamentos. E o que resta de tudo isso nas relações produtivas de uma amizade? Resta o desperdício de oportunidades! Oportunidades terapêuticas!


Tom Simões, jornalista, tomsimoes@hotmail.com, fev. 2019  




SOU privilegiado pela capacidade de permitir a aproximação de bons amigos! Geralmente eu mesmo tomo a iniciativa! Eles são vitais! Afetam essencialmente minha existência.
      
Mas, o que é exatamente um amigo? (1) Às vezes a palavra ‘amigo’ é usada tão livremente que é aplicada praticamente a qualquer conhecido que não seja hostil. O amigo genuíno, porém, é mais do que mero conhecido. Ele é aquele que aumenta a felicidade e, quando necessário, ajuda a vencer a tristeza. Francis Bacon escreveu sobre o amigo fidedigno (digno de crédito, de confiança, de fé): “Ele duplica as alegrias e corta as tristezas pela metade”. 
Temos o hábito de definir como ‘amigo’ muitos daqueles que convivem conosco de alguma forma. Mas amigo íntimo, genuíno, verdadeiro, ‘amigo-irmão gêmeo’ (mais que querido), eu creio que temos um ou dois... Mais, ao longo do tempo... Se forem dois, eu diria, por experiência própria, converso intimamente com um sobre umas particularidades e com o outro sobre outras particularidades... Ainda que nada impeça que converse com ambos sobre tudo, pela extrema confiança!

Algo que li recentemente, mas não registrei a fonte, infelizmente: “Quantas pessoas lhe conhecem, não digo completamente, que seria impossível, mas 50% de você? Se na resposta você utilizou todos os dedos de uma mão, você é um milionário. Tal situação começa, sim, pela falta de interesse. A primeira lição de psicanálise deveria ser: não tire os outros por si. Eles são diferentes. Definitivamente, interessar-se por conhecer o outro é um gosto adquirido, como o da música clássica. E tão raro quanto!”      

E o ‘amigo virtual’? Parece uma expressão fria. Mas não é! Certamente a gente pode encontrar uma pessoa ou outra na rede social com a qual nos identificamos de maneira surpreendente. Eu chego mesmo a me emocionar quando um (a) amigo (a) virtual passa a se corresponder comigo, no campo privado da rede social, pedindo orientação particular para algo. O que leva um internauta a confiar plenamente em outro internauta? Talvez no meu caso seja por conta de eu ter um perfil no meu blog e no Facebook que dão conta do meu propósito com esses veículos: compartilhar minhas ideias e crenças para modificar comportamentos. Eu não sirvo como exemplo por conta da minha vocação e paixão pela área da Psicologia, o mesmo que sinto pelo jornalismo que exerço. Citando a escritora norte-americana Susan Sontag, “A maioria das coisas que faço, ao contrário do que pensam, é muito intuitiva e nada premeditada”. Costumo dizer: “Espero que você encontre aqui alguma coisa que possa usar para melhorar sua vida”. Daí, mesmo sem atrair muitos visitantes, mantenho um público fiel e qualificado. Realmente tenho contato virtual com algumas pessoas especiais que é como se as conhecesse pessoalmente.                                                                                                                                                       
Em relação ao (à) amigo (a) genuíno (a), essa pessoa tão diferente da gente, mas que, ao mesmo tempo, nos compreende como ninguém... Citando George Eliot, romancista autodidata britânica, “A amizade é o conforto indescritível de nos sentirmos seguros com uma pessoa, sem ser preciso pesar o que se pensa, nem medir o que se diz”. Enquanto na visão do dramaturgo e poeta inglês William Shakespeare, “Amigos são a família que a vida nos permite escolher”.  

A gente pode então reunir na vida o número de amigos que temos capacidade de atrair. E, por serem distintos, a nossa relação é exclusiva com cada um deles. É claro que há limites nos relacionamentos, dependendo da personalidade de cada um, o que nos impõe a necessidade de compreensão e respeito ao ato de convivência. 

Que é bom estar junto dos amigos ninguém duvida. Mas quando refletimos sobre os significados mais profundos da verdadeira amizade? Que sentimento é esse que une pessoas diferentes, que ultrapassa limites e distâncias?

Exceções também ocorrem. Alguém que se faz de bom amigo durante muito tempo, por necessidade de apoio em determinada circunstância, e um dia nos surpreende, após dar-se bem na vida, por exemplo, tornando-se alguém desconhecido. Na vida, todos nós enfrentamos desilusões. Decepcionamo-nos com amigos, parentes e até conosco mesmo.

É triste quando um amigo se torna um desconhecido, como uma página virada. Sobra a indiferença. Entretanto, ainda que o ‘presumível amigo’ não tenha se revelado um grande amigo ao longo do tempo, geralmente a experiência não deixa de acrescentar coisas boas para ambos os lados. Eu tive uma experiência dessas. Preferi preservar as boas lições aprendidas. (11)

Na vida não faltam ocasiões nas quais podemos nos surpreender com atitudes de pessoas com as quais convivemos. Algumas que acreditávamos serem leais à amizade. É fato, muitas vezes não conseguimos reconhecer o falso amigo até que o dano esteja feito… Então, o sofrimento se manifesta pela quebra de confiança por alguém dissimulado, capaz de ocultar seus reais sentimentos e intenções.

O Dalai Lama expressa esse sentimento: “É engraçado como depositamos tanta confiança e tanto sentimento nas pessoas. Em pessoas que achávamos conhecer, mas, que no fim, só mostraram ser iguais a todos. E por esperar demais, sonhar demais, criar expectativas demais, acabamos nos decepcionando e nos machucando cada vez mais”.
“O verdadeiro amigo é alguém com quem podemos revelar sentimentos íntimos. Ao mesmo tempo é aquele com quem somos capazes de compartilhar o silêncio sem constrangimento. É a pessoa com quem se deseja estar nos piores e nos melhores momentos. A verdadeira amizade é terapêutica em muitos sentidos, mas não se mantém pela utilidade que venha a ter. Porque chamamos ‘amigo’ aquele a quem simplesmente amamos e somos por ele amados. Assim, sem grandes explicações, não cabendo em predefinições. (2)
[...] No laço de amizade queremos ver o outro bem, queremos presenciar seu crescimento, compartilhamos dores e alegrias, estamos ao lado. O amigo é aquele que nos aponta o que precisa de cuidados, que nos diz às vezes palavras duras com a intenção de que sejamos pessoas mais plenas. Em outros momentos ele traz palavras doces, equilibrando nosso modo duro demais diante de algumas situações. O amigo é aquele que parece sondar o mais profundo em nós, ele vem com seu jeito único e nos apresenta um outro lado. Ou simplesmente cala para que nós possamos ouvir nossas palavras que ecoam. Oferece ombro, ouvido e coração.”
O amigo genuíno está sempre pronto a nos defender. Se alguém aponta falhas, ele logo trata de realçar qualidades.   
É cada vez mais difícil alguém conseguir um tempinho de sobra ao longo do dia. “Tudo é corrido, urgente, as pessoas não têm mais tempo para desfrutar de um passatempo, de uma amizade, para não fazer absolutamente nada, apenas descansar. Trabalha-se mais, e ainda se acumula serviço por fazer, enquanto os relacionamentos humanos se esvaziam. Mas não há quem possa manter um mínimo de equilíbrio sem ter ao menos uma pessoa com quem dividir momentos de descontração ou desabafos.” (3)    
Marco Túlio Cícero, filósofo grego, fala sabiamente: “Haverá algo mais belo do que ter alguém com quem possa falar de todas as coisas como se falasse consigo mesmo? [...] Um amigo é como se fosse um segundo eu”. 

Felizes as palavras do cantor, guitarrista e compositor jamaicano Bob Marley sobre o amigo: “Em minhas alegrias e tristezas se fez presente, me ajudando e aconselhando e nunca me pediu nada em troca, lhe faço confissões que meus pais jamais saberiam, e sei que as levará consigo eternamente, essas intimidades atingem graus que me faz perder amigos, mas ganhar irmãos para o que der e vier”.

“Amigo é aquele com quem conseguimos conversar sobre praticamente tudo, relevando nossos sentimentos mais íntimos. Não há julgamento ou constrangimento, e o amor não tem definições ou explicações. Os laços de uma amizade são profundos e vão desde uma palavra de conforto até algum conselho duro, quando necessário. Mas, qual o valor terapêutico de uma amizade? (4)
[...] Um amigo nos faz crescer e amadurecer, pois é alguém que faz parte de nossa vida por escolha e com quem aprendemos a conviver. Com ele vivenciamos o que é o amor incondicional e são nossos primeiros vínculos de relações de similaridade, ou seja, não há autoridade e sim respeito mútuo.
[...] Provavelmente você já deve ter ouvido falar que o ser humano não nasceu para ser solitário. Somos seres sociais que necessitam constantemente de outros para complementar a nossa felicidade. Queremos testemunhas para nossas vitórias e derrotas, pois é com a amizade que construímos a afetividade e manifestamos e experimentamos o amor e o carinho, sentimentos que nos tornam humanos. Um amigo é uma fonte de segurança e também um apoio psicológico – que todos nós precisamos.” 
Gosto especialmente de Jean-Paul Sartre, filósofo e escritor francês, ao falar sobre o amigo: “É quando te vejo que me encontro melhor, parece-me que me deixei em depósito com você [...] Pensei muitas vezes que deveríamos nos ver mais. Creio que envelheceríamos menos depressa se pudéssemos nos encontrar de quando em quando...” 

Daí eu propor esta reflexão sobre o ‘valor terapêutico da amizade’. Quem efetivamente já se abriu intimamente com um amigo como que se estivesse se abrindo com um psicanalista? “Quem te conhece, profundamente?”, observa o psicanalista Francisco Daudt. Por minha vez, indago: “Quem é digno de ouvir meu(s) grito(s) calado(s)?” Então respondo: “Aquela pessoa que eu confio e me identifico plenamente, com a qual vigora um relacionamento de afeto desinteressado, que define o amor incondicional”. 

Eu não tenho dúvida em relação a esta sentença de Cícero: “A amizade apenas encontra a sua plena irradiação na maturidade da idade e do espírito”.


ALGUNS não conseguem se libertar dos seus próprios grilhões, mas conseguem libertar os amigos.”

Friedrich Nietzsche, filósofo e escritor alemão




Não é tão fácil


“Mas não pensem que é fácil encontrar esse amigo leal. Lealdade precisa ser testada por anos, em diferentes cenários. Muitos se enganam em seu juízo e depositam precocemente sua confiança em quem os desilude, quando não os expõe. E essa percepção de que temos que tomar cuidado se espalhou em algum tempo, mundo afora, e hoje somos todos uns desconfiados da vida”, comenta o amigo genuíno Roberto da Graça Lopes. Uma grande barreira para o desabrochar de verdadeiras amizades. Mesmo uma enorme árvore, diz Graça Lopes, um dia já foi um pequeno broto, preservado sabe-se lá por que forças e coincidências. O poeta e cronista Carlos Drummond de Andrade vai fundo nessa questão: “A confiança é um ato de fé; e esta dispensa raciocínio”.  Há um clássico de Cícero: “Antes de mais nada, a amizade, estou convencido, só pode existir nos homens de bem. Homens de bem: todas as pessoas que, em sua conduta, em sua vida, deram prova de lealdade, de integridade, de equidade, de generosidade, que não trazem dentro de si cupidez, nem paixões, nem inconstância, e são dotadas de grande força de alma, podem todas, penso, ser contadas entre pessoas de bem”.

Mesmo com o especial amigo, por vezes (não poucas) falta coragem para a gente se abrir. Na verdade, ‘falta confiança’. Eu acompanhei há alguns anos o rompimento de uma grande amizade entre dois homens (ambos do meu relacionamento) que me abalou profundamente. Conhecendo a relação que mantinham, foi difícil compreender. Na verdade, entendi o rompimento por conta da lealdade de um e o egoísmo do outro.

Nesse caso, engato as palavras de Mario Quintana, poeta e jornalista brasileiro: “Não te abras com teu amigo, que ele um outro amigo tem. E o amigo do teu amigo possui amigos também”. É nesse sentido que reina a ‘desconfiança’ que nos torna incapazes de revelar os nossos segredos. “Poderíamos dizer que, assim, a desconfiança nasce de uma ‘confiança em cadeia’, que, ao se afastar da origem, fragiliza a discrição e a confidencialidade original. Ninguém trai o ‘amigo original’, mas num certo ponto dessa cadeia se desvanece a figura do amigo e a fidelidade a ele devida. Surge o ‘conhecido’ e então, não raramente, a fofoca”, prossegue Graça Lopes.
 




Falar com um amigo e falar com um terapeuta...
O compositor Frejat escreveu “Eu te desejo muitos amigos, mas que em um você possa confiar”. Muitas pessoas têm esse amigo, o melhor amigo, aquela pessoa com quem você pode fazer qualquer coisa, ou nada, e ter bons momentos juntos permanentemente.
Em sendo assim, uma pergunta me vem à cabeça e a percebo pertinente: “Até que ponto a conversa com seu melhor amigo pode substituir a conversa com um terapeuta?”. (5)    
“Levar em consideração que existe muito mais além da situação externa, há na verdade um mundo interno de conflito que precisa ser resolvido antes de qualquer ação.
[...] É normal que os amigos queiram nos distrair, tirar o nosso foco da situação para diminuir o sofrimento, mas eles fazem isso justamente porque não sabem ajudar de outra maneira. Quando a questão é mais séria, se distrair não adianta, quando você voltar para casa, o problema estará lá te esperando.
[...] Algumas questões emocionais não vão simplesmente passar sozinhas, nem com conselhos, nem com distrações, nem com abraços sinceros e amorosos. Você vai precisar encarar o problema de frente e se achar que não consegue sozinho, é o momento de procurar ajuda profissional.”

O termo ‘psico’ tem origem grega e significa ‘alma’. Já o termo terapia, também de origem grega, tem o significado de tratamento ou cuidado com a saúde. Desta forma, psicoterapia significa tratamento da alma. Cuidado com a saúde da alma. Aqueles que tratam ou cuidam de almas são os psicoterapeutas. (6)

Abordando de maneira mais científica, se poderia dizer que “a Psicologia é a ciência que estuda o comportamento humano e seus processos mentais, ou seja, estuda o que motiva, sustenta o comportamento humano, os processos mentais, as sensações, a emoção, a percepção, a aprendizagem, a inteligência...”.    

[...] A partir desse ponto, a alma é considerada como algo a ser desenvolvido, visto que a condição natural do homem é desenvolver-se, e a condição patológica ou de doença seria a incapacidade de fazer isso. A cura para a alma seria a recuperação da sua capacidade de desenvolvimento, e aí a filosofia também teria um grande papel. A arte da cura está mais para o intelectual do que para as ações materiais. A cura da alma passa a ser dissociada da materialidade e da natureza, é preciso entender a alma por meio de sua expressão moral (as paixões humanas) e por meio de seu pensamento. Daí surge a ideia de que Sócrates foi o primeiro psicoterapeuta, pois começou a usar a indagação, o raciocínio, como forma de investigação e desenvolvimento da alma humana.

[...] A partir do renascimento e do declínio do período de domínio religioso sobre a ciência e a arte, aos poucos as ideias sobre alma começam a se desvincular da religião. O pensamento de Descartes foi primordial nesse sentido. Sua frase máxima: “Penso, logo existo”, traduz o sentido a ser dado à alma a partir de então. A alma passa a ser considerada como ‘razão’. O adoecer psíquico passa a significar a perda da razão, e então se reforça o sentido de loucura como irracionalidade.”

Isto tem implicações graves. Como explica Graça Lopes, a mudança de paradigma, ou seja, abolir a face espiritual no Homem, representada pela alma dos antigos, e substituí-la pela razão, como fruto do intelecto, faz com que muitos psicólogos/psicoterapeutas vejam o indivíduo apenas como um amálgama mal resolvido de pensamentos e emoções a transitar pelas ruas e vielas de neurônios e glias que constituem nosso encéfalo. Mas isto não vem ao caso. “Acredito que todos são interessados em cutucar, remisturar, querendo sinceramente ajudar, embora conceitos limitados possam levar à limitação das possibilidades de cura (... para a alma).” 

Conversar com um amigo é para quando estamos querendo colo, mas se queremos verdadeiramente resolver uma situação, a pessoa certa para isso é o psicólogo. (7)
Os amigos, por mais que nos amem e acolham, dificilmente conseguem deixar de lado o julgamento ou ainda, não conseguem se colocar no nosso lugar, sem se envolver e misturar com a nossa dor.
[...] O psicólogo é treinado para isso, ouve atentamente, filtra as informações, compreende e devolve para o paciente um discurso de maneira organizada, a fim de chegar à resposta que faça sentido e o ajude a evoluir.” 
 




“Por que tantas pessoas fogem da psicoterapia ou qualquer abordagem de autoconhecimento?”, indaga a psicóloga Dayani Croda Machado. Para ela, por mais dolorosa que seja uma situação, é difícil admitir nossa parcela de responsabilidade sobre ela, analisar friamente nossas condutas de ação-reação, olhar de perto para nossa própria confusão... Sendo assim, o ‘paraíso da ignorância’ nos permite ficar confortáveis dentro das nossas razões, do nosso ponto de vista, da nossa verdade... Isso gera muitas perdas, mas tem sua parcela de conforto!
Para essa especialista, a psicoterapia é um processo doloroso! “Ter no terapeuta um espelho que reflete nossa infantilidade, nossas teimosias, nossos quereres e ser confrontado com isso é um processo que exige coragem... que nos expulsa do paraíso da ignorância das nossas responsabilidades... é não ter mais a permissão para projetar no outro ou em qualquer coisa externa a causa das nossas frustrações e insucessos... é duro! Sempre digo que tempo e dinheiro é o que menos se investe em terapia! É um investimento do que nos é mais sagrado, um mergulho no que temos de mais belo e mais negro... Porém, não conheço nada mais libertador! Porque ampliar o conhecimento de nós mesmos abre muitas, muitas portas e o poder das verdadeiras escolhas”.



Falta de coragem

Quase uma regra geral. Há uma incapacidade de as pessoas expressarem seus sentimentos e emoções. A doença pode surgir então como consequência, uma válvula de escape, dessa incapacidade de resolver de maneira adequada os conflitos interiores. Os males do corpo, como a úlcera, a asma brônquica, a hipertensão arterial e a artrite reumatoide constituem meras expressões dos ‘males do espírito’, ou seja, provêm de um vulcão progressivamente criado dentro da pessoa. É o que se chama ‘psicossomatização’: qualquer alteração somática (física) decorrente de sofrimento ou desassossego interior.
Como observa Marco Aurelio Dias da Silva, em sua obra ‘Quem ama não adoece’, “A vida se constitui numa sucessão de perdas. As frustrações e perdas pequenas mas repetidas e constantes são também a causa de doenças. Na necessidade de adoecer, esteve sempre a falta de amor a si mesmo, a incapacidade de exteriorizar emoções, a necessidade desesperada e vital de reconhecimento e da atenção do mundo exterior”. E eu acrescentaria a falta de aproveitamento de uma boa amizade.
As pessoas sofrem de si mesmas. Todo mundo pode mudar para melhor, se quiser. Muitas vivem na câmara de eco da própria presunção arrogante. O filósofo Henry David Thoreau lembra que a verdadeira transformação é pessoal, interior, totalmente individual, correspondendo à descoberta da divindade em cada pessoa como elemento indissociável da Natureza. Há algo que interroga: “Poderá Deus edificar o santuário da felicidade em nós, se não puder contar com os alicerces da boa vontade em nosso coração?”.          
E a coragem para se abrir com alguém? Nem com o melhor amigo, nem com o psicanalista. Como me abrir com um amigo. O que ele irá pensar de mim? É isso que sucede. Com o profissional, a fuga é a mesma. Mas eu creio que, além da falta de coragem, o mais forte é a falta de confiança. Nem mesmo um devoto católico talvez seja capaz de se libertar de um problema íntimo conversando com um sacerdote, mesmo com o sagrado sigilo sempre prometido. Os devotos prostram-se diante do intermediário de Deus para apenas descrever qualquer oficialmente reconhecida desobediência aos mandamentos divinos.
O bom homem reflete sua boa alma em seu semblante. Há algo de diferente, de contagiante, em seu sorriso. Quando a gente desperta a consciência para amadurecer espiritualmente, somos movidos pela Divina Providência. Mesmo conduzindo tudo, Deus jamais tira a liberdade do homem, uma vez que este não é marionete. Nesse amplo sentido, ao despertar, ao ficar atento, sempre aparecerá alguém em nossa vida capaz de nos orientar. Esse é um fato inquestionável. Quem partilha desta experiência? Várias vezes a pessoa está ali e não tem essa consciência. E então pode perder a oportunidade de ser divinamente guiada.
Cada indivíduo tem um histórico de vida, emoções, cultura, hábitos e toda a riqueza de uma experiência humana. Deveria ser da essência de quem cuida de seres humanos ouvi-los com alma e coração.   
Há amizades nos mais diversos níveis de relacionamentos. Referimo-nos a ‘meu (minha) amigo (amiga) a muita gente que conhecemos. Mas quem são os amigos mais íntimos? Com quem desenvolvemos uma forma imaculada de amizade? Amizade verdadeira é quando sentimos liberdade para expressar as coisas mais profundas do nosso interior. Não basta ser amigo. Temos que participar da construção do outro. Aliviar a carga um do outro. Porque ter amigos apenas para encontros agradáveis é muito saudável também, livra-nos das preocupações, mas não mexe fundo no coração!    
Com aquele (a) um (a) ou outro (a) amigo (a) com quem sentamos para tomar um café, uma cerveja, chegamos a conversar sim sobre fatos particulares. Mas sempre com limites, com cuidados... Chega a dar um aperto no peito quando não podemos ir mais longe com o diálogo, sentindo-nos inseguros em relação à   confiança no outro. O cérebro envia uma mensagem para libertar-nos. Mas cadê a coragem? 
Tudo isso é muito delicado. Extremamente delicado! Somos inseguros. Há ausência de ‘confiança’ nos relacionamentos. E o que resta de tudo isso nas relações produtivas de amizade? Resta o desperdício de oportunidades!  Oportunidades terapêuticas!  Oportunidade de lançar fora o que está guardado por toda vida. Quem não experimenta essa situação de sofrimento psíquico intenso com algo forte guardado em seu interior? 
Daí é esbarrar nessa coisa mágica do ‘autoconhecimento’. Quando a gente desperta e investe nesse sentido, um novo mundo se descortina. A gente se aceita profundamente e adquire confiança.
“A forma como você se comporta e responde a situações externas é regida por processos mentais internos e conseguir identificá-los e compreendê-los é essencial para ter uma vida mais saudável e equilibrada. (8)
[...] O autoconhecimento começa dentro da mente e se reflete no exterior, mudando positivamente a forma como uma pessoa percebe o mundo e reage a diferentes situações.

Existe um provérbio africano que diz que “quando não há inimigo dentro, os inimigos de fora não podem fazer nenhum mal”. E esse é um excelente resumo sobre autoconhecimento.

[...] O autoconhecimento, como o próprio nome diz, faz com que as pessoas se conheçam, se entendam e, a partir disso, tenham consciência sobre o que se passa em sua mente e como isso afeta sua vida. E é por isso que essa prática é tão importante.

[...] Tendo ciência de seus hábitos e pensamentos, é possível identificá-los como bons ou ruins e trabalhar para que eles sejam mais ou menos frequentes e poderosos. Uma pessoa com mais entendimento sobre seu interior poderá usar isso para se desenvolver e evoluir – seja na vida amorosa, pessoal ou profissional.”


Psicanálise na rua
Recentemente, a cidade de São Paulo, grande centro cultural do País, vem dando exemplos nesse sentido.  Grupos de psicanalistas dão atendimento gratuito no centro paulistano. A iniciativa deve se espalhar para outros pontos da cidade. Um desses grupos atua na praça Roosevelt. Analistas de outros estados, como Minas Gerais e Paraná, estão interessados em organizar grupos semelhantes nas capitais. 
Segundo o psicanalista Aldo Zaiden, que atua na praça Roosevelt, no caso de uma clínica aberta a qualquer um que se interesse, é possível identificar mais claramente a dimensão de ‘laboratório social’ da psicanálise, ou seja, enxergar a sociedade por meio da singularidade do indivíduo. “Sob a forma de um, é o mundo que está ali”, afirma. “As pessoas estão sofrendo numa marca individual e num sistema de mundo. E existem certos padrões: imensos circuitos de violências privadas, relações degradadas. Muitas pessoas nos procuram se perguntando por que são tratadas como lixo em suas casas. Isso é um sofrimento, uma dor pessoal, mas também um sistema geral de linguagem de relação de poder”. (9)

“O coletivo é composto de jovens com sólida formação acadêmica — oriundos das melhores instituições de São Paulo —, que publicam artigos relevantes sobre o tema em revistas especializadas. Recebem apoio de psicanalistas renomados, que participaram da criação desse tipo de clínica. Há outros coletivos que oferecem esse tipo de trabalho em São Paulo e em outras capitais brasileiras. Esses grupos, mesmo com diferentes abordagens, costumam trocar experiências entre si, formando uma rede de apoio essencial”, revela Vera Iaconelli, doutora em psicologia pela USP, autora de ‘O Mal-estar na Maternidade’. (10)
Para Iaconelli, os coletivos não são a solução para o problema da saúde mental no Brasil, mas são um modelo de atuação solidária e coletiva no espaço público, que tanto nos faz falta hoje. No meio de um verão de ‘temperatura sufocante e ar irrespirável’, surgem como uma lufada de frescor. 
Que bom seria se uma parte significativa das pessoas tivesse acesso gratuito à psicoterapia! Que bom se cada um de nós pudesse ter um amigo verdadeiro para conversar com toda a liberdade! Como melhoraria o relacionamento pessoal e social! Não há alguém que não precise de orientação psicológica. Por melhor que seja uma pessoa, sempre há algo a equilibrar em sua personalidade.
Isto tudo não é um sonho. Há sinais de progressos nesse sentido. Quem disse que o mundo não experimenta dias melhores cada vez mais acentuadamente?

***
                          

Fontes de consulta:

(1)               ‘Amigos genuínos — por que são tão difíceis de encontrar?’,  https://wol.jw.org/pt/wol/d/r5/lp-t/1985360#h=4 
(2)              ‘O valor terapêutico da amizade’, http://objeto-de-estudo.blogspot.com/2010/07/o-valor-terapeutico-da-amizade.html
(3)              ‘Tomar café com um amigo: uma das melhores terapias do mundo!’, http://obviousmag.org/pensando_nessa_gente_da_vida/2018/tomar-cafe-com-um-amigo-uma-das-melhores-terapias-do-mundo.html
(4)              ‘Terapia entre amigos’, https://www.psicologosberrini.com.br/psicologia-e-psicologo/terapia-entre-amigos/
(5)              ‘Quatro diferenças entre falar com um amigo e um terapeuta’, https://www.hipnosenapratica.com.br/quatro-diferencas-entre-falar-com-um-amigo-e-um-terapeuta/

(6)              ‘Compreendendo o significado de terapia’, https://www.portaleducacao.com.br/conteudo/artigos/psicologia/compreendendo-o-significado-de-terapia/10644  

(7)              ‘Conversar com amigo: por que é diferente de fazer terapia?’, https://psico.online/blog/por-que-conversar-com-amigo-e-diferente-de-fazer-terapia/

(8)             ‘Autoconhecimento: o que é e 15 exercícios para praticar’, http://penser.com.br/autoconhecimento/

(9)              ‘Coletivo de psicanalistas realiza atendimentos gratuitos no centro de SP’, https://revistacult.uol.com.br/home/coletivo-de-psicanalistas-realiza-atendimentos-gratuitos-em-sp/

(11)           ‘Lidando com as decepções na amizade...’, https://osegredo.com.br/lidando-com-as-decepcoes-na-amizade/


Um comentário:

  1. Professor Claudio: é sempre bom sentir uma acolhida verdadeira quando expressamos um bom pensamento capaz de provocar boas reflexões. "Quanto mais temos conhecimento de 'si mesmo', tanto mais perguntamos como empregá-lo no mundo" (Michaela Glöckler, Força Sanadora da Religião). Você, Claudio, também tem esse mérito! Parabéns pelo seu incansável trabalho de compartilhar o conhecimento capaz de promover mudanças transformadoras em seus seguidores!

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