Marcelo Coelho, coelhofsp@uol.com.br, Folha de S.Paulo, Ilustrada, 23 de julho de 2008
JÁ TINHAM me dito que "O Escafandro e a Borboleta" era um ótimo filme, e que seu assunto era terrível. Conta a história real de um homem relativamente jovem, atingido pelo mais violento dos derrames.
Jean-Dominique Bauby continua lúcido. Mas a única parte do corpo que pode mover é a pálpebra de um olho. Graças a um sistema de letras e piscadas criado no hospital, ele conseguiu "ditar", antes de morrer, o livro que dá conta de sua experiência.
Também haviam me contado que a maioria das cenas do filme de Julian Schnabel é apresentada como se o próprio espectador fosse a vítima do acidente vascular cerebral: rostos e imagens passam diante de nós assim como teriam passado pela única retina "viva" do protagonista.
Eu sabia ainda que, apesar de todo o desespero de sua situação (chamada de "locked-in syndrome", ou síndrome do encarceramento), o narrador guarda traços de ironia, de humor, e mesmo de um hedonismo muito francês no que se refere a mulheres e culinária.
Com tantas informações favoráveis, fui ver o filme num estado de espírito razoavelmente leve, mais para "borboleta", digamos, do que para "escafandro".
Mas não foram precisos muitos minutos de projeção para me dar conta do sufoco em que tinha me metido.
Continuei achando o filme muito bom, mas pensei várias vezes em ir embora do cinema. Numa palavra, eu não queria estar ali, assim como o protagonista do filme (marcante atuação de Mathieu Amalric) também desejava, é claro, sair do seu lugar...
É que a situação de um espectador no cinema, em qualquer filme, tem algo de semelhante à de quem vive a "locked-in syndrome": olhos e ouvidos funcionam, mas dentro de um campo de visão determinado e estreito, sem que seja possível fazer nada para intervir no que se passa.
Surge assim uma grande identificação entre espectador e personagem. Ficamos, terrivelmente, no seu lugar: e essa sensação, por mais que tivessem me falado a respeito do filme, só mesmo assistindo se tem idéia de como é.
Ao mesmo tempo, toda essa proximidade entre personagem e espectador de alguma forma é boicotada pela estética do filme. Curioso que um artista plástico tão célebre, como Julian Schnabel, tenha afinal um repertório de imagens relativamente triviais na hora de passar para a tela os sonhos e desejos do protagonista.
Talvez porque, na vida real, Jean-Dominique Bauby tenha sido redator-chefe da revista "Elle". Quando, no auge do desespero, ele consola-se pensando que terá sempre consigo o poder da própria imaginação, aparecem cenas publicitárias de beijos, praias no Taiti, cordilheiras nevadas...
Tudo o que, como se sabe, é imposto de fora sobre a gente, incutindo-nos a idéia de que aquele feroz molde de consumo luxuoso e estandartizado sempre fez parte de nossos desejos mais pessoais e secretos...
A música e a montagem sem dúvida ironizam esse tipo de sonho. Por vezes, entretanto, parece que Julian Schnabel leva a sério suas metáforas visuais: uma geleira despencando seria símbolo do colapso vascular do personagem, por exemplo, em meio a outras banalidades do mesmo tipo.
Em meio a esse jogo entre identificação pessoal imediata com o protagonista e o esperanto publicitário, impessoal e midiático, resta o que "O Escafandro e a Borboleta" traz de mais poderoso, acho, para quem o assistir.
É que o filme projeta muitos outros medos além do de ser vítima de um cataclismo físico. Claro, é arrepiante a idéia de sofrer um derrame daqueles. Mas esse é o tipo de medo que, uma vez imaginado, logo rejeitamos para o plano da hipótese remota.
O pior são os medos que não fazem parte de hipótese nenhuma, e com que convivemos de fato na vida pessoal. Cito apenas alguns, dos muitos que "O Escafandro e a Borboleta" pode suscitar. Há, por exemplo, as dificuldades de Jean-Dominique com a ex-mulher; ou sua dor diante do envelhecimento do pai (um inesquecível Max von Sydow).
E há também a situação de ser amado, sem saber como retribuir. Só resta a Jean-Dominique expressar, com mínimos movimentos de pálpebra, a sua gratidão. Sentir-se aquém do coração dos outros: eis um aspecto terrível de sua condição, que não depende de derrames para também estar presente, sem dúvida, no cotidiano de qualquer um.
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