sexta-feira, 29 de abril de 2011

A SOCIEDADE DA NEVE

Imagem: uma flor nos Andes, 
Paulo Takarada, jan. 2008
Há em mim o desejo de compartilhar o resultado de minhas buscas e descobertas, sintetizando ao leitor o pensamento de seres humanos especiais, que se tornam referência na investigação, experimentação e revelação de verdades básicas que auxiliam a nossa compreensão sobre a lógica universal. Seres humanos que desenvolvem uma nova visão, uma nova escuta, uma comunhão integrada com a complexidade da existência.
 
Leiam, leiam. Leiam sempre. Algumas boas obras destinadas ao autoconhecimento, por exemplo, não raramente consideradas preconceituosamente como de “autoajuda”, podem transformar a mente e corrigir alguns maus hábitos, passo fundamental para a transformação do ambiente em que vivemos. Há certamente pessoas que independem do hábito da leitura para transmitir sabedoria. Aprendem com a própria existência, servindo como referência na superação de sofrimento e na transmissão de afeto, alegria e paz.
 
Ignorar esses fatos significa não ter consciência da própria estagnação, limitando-se a insensatos argumentos que refletem a própria ignorância e indisposição de mudar a mente, ao invés de optar pelo reconhecimento da própria limitação e da vontade de se superar e se transformar em um indivíduo cada vez mais útil para a sociedade.  
 
Tenho o hábito de sublinhar e transcrever trechos que considero importantes nas obras que leio. Isto ficou difícil no livro “A Sociedade da Neve”, de autoria do uruguaio Pablo Vierci. Há muito o que sublinhar e transcrever. Por isto, recomendo ao leitor que o adquira em sua nova ida à livraria.
 
Estou cada vez mais convicto de que quando nos dedicamos a bons propósitos, não raramente nos surpreendemos com o que naturalmente cai em nossas mãos. Algo que surge para complementar um projeto, uma ideia, um artigo..., como a narrativa dos sobreviventes dos Andes contida em “A Sociedade da Neve”. Uma obra cujo título provavelmente não chamaria a minha atenção numa livraria e que chegou a mim através de Carlos Lavieri, que falou à minha filha, amiga de sua esposa, que o livro tinha a ver com as minhas concepções filosóficas.
 
Para Carlos, o livro sobre o acidente nos Andes é especial, por ter como foco central não as dificuldades e a criatividade dos sobreviventes de uma tragédia, mas sim a percepção e o lado humano dos envolvidos. “É uma obra que discute muito a questão espiritual, a questão dos valores e as diversas ‘verdades’ que recheiam a história dessas pessoas. Também gosto muito por se tratar de um livro ‘sobre gente’, com defeitos, qualidades e onde cada qual tem uma visão única dos fatos (todas incompletas, todas verdadeiras, todas falsas) que vão se juntando e constroem para o leitor uma nova verdade sobre o que aconteceu.”

O que me fez pensar que você gostaria dessa leitura, complementa Carlos, foi primeiro a história em si, que imagino que já a conhecesse, mas que provavelmente tinha aquela imagem clichê que ficou no inconsciente coletivo (“Ah! essa é aquela história do pessoal que comeu os outros para sobreviver...”). Só por isso já é legal, pois solapa uma visão simplista de um fato único, diz.  

É claro que não me prendi à obra por conta de uma narração sensacionalista do acontecimento. Se o relato de Pablo Vierci fosse nesse sentido, o livro certamente não cairia em minhas mãos. O que “A Sociedade da Neve” tem de especial é a oportuna reflexão filosófica a que nos levam os relatos dos sobreviventes, tão bem documentados pelo autor. Emocionou-me também o fato de os sobreviventes serem pessoas da minha geração.
 
Chego a imaginar que a leitura da obra “A Sociedade da Neve” deveria ser obrigatória a todo cidadão, servindo como uma espécie de “Documento de Identidade”, pelas valiosas lições de vida nela registradas. A gente conclui a leitura do livro bastante fortalecido, mais do que era antes: amplia-se a visão de como se concebe e valoriza a vida, não há como ser diferente.  
 
DO QUE SE TRATA
 
Em outubro de 1972, um avião fretado da Força Aérea do Uruguai que rumava para o Chile se choca contra uma montanha na Cordilheira dos Andes. Das 45 pessoas a bordo – a maioria fazia parte de um time de rúgbi amador, 29 sobreviveram ao impacto, mas apenas dezesseis foram resgatadas, depois de 72 dias.
 
Durante esse tempo, descreve o autor, que foi colega de colégio de alguns jovens que estavam no avião, os sobreviventes ficam cercados por rocha e gelo, sem roupas apropriadas, sob temperaturas de até trinta graus negativos, abrigados no que restara da fuselagem depois da colisão. Famintos, lançam mão de um recurso extremo: alimentar-se da carne dos amigos mortos.
 
Na obra “A Sociedade da Neve”, resultado de profundas reflexões sobre o acontecimento, os sobreviventes contam como foram aqueles dias e noites na montanha, como superaram situações extremas, como entenderam a morte e o que o acidente representou para o resto de suas vidas.
 
Conta o autor que todos os sobreviventes dos Andes têm algo em comum: falam de afeto, vibram com relatos emocionantes, choram com a música que lhes toca a alma.
 
No livro, cada um dos sobreviventes narra a sua experiência. Neste meu artigo, optei por relatar algumas fortes emoções sentidas por eles, sem mencionar nomes. Não importam os nomes. Importa sim que todos os sobreviventes tinham o mesmo espírito de afeto e solidariedade, como também uma capacidade extraordinária para suportar a adversidade e o sofrimento, sem perder a Esperança. É por isto que escolhi uma flor para ilustrar o meu artigo.
 
É claro que a minha síntese não é suficiente para o leitor. O livro tem muito, muito a ver com grandes emoções e lições de vida para o leitor. Confesso que chorei em vários trechos, chegando até mesmo a soluçar em determinado momento, algo que não lembro ter ocorrido alguma vez com leitura em minha vida. Cheguei até mesmo a necessitar interromper a leitura, para, após um intervalo, prosseguir alguns capítulos, por conta da emoção.
 
LIÇÕES VERDADEIRAS
 
Os sobreviventes aprenderam muito com todo aquele sofrimento. Eles estavam bem no centro da Cordilheira dos Andes, o pior lugar do planeta para se perder, narra Pablo Vierci. Aprenderam que a vida é algo que se deve merecer, como conta um deles, que não se ganha de presente, e que para merecê-la é preciso dar alguma coisa, afeto fundamentalmente...
 
O ensinamento que extraí, revela outra vítima, é que não existe nada melhor e que proporcione mais tranquilidade de espírito do que se dedicar ao outro, “este é o principal aprendizado que recebi, e com ele me sinto em paz”.
 
Todos os sobreviventes, ao narrarem suas histórias, pensam sempre em como ser úteis a alguém. “Quando voltamos à civilização, as pessoas nos olhavam e diziam que estávamos ‘místicos’, que não éramos os mesmos de antes”.
 
Outro nos inspira: “Como alguém que tem a morte clínica declarada, e quando consegue voltar à vida faz isso de uma maneira completamente diferente, porque não pode esquecer aquilo que de mais poderoso ocorreu, diante do qual todo o resto adquire um sentido diferente”.
 
Conforme uma vítima, o que aconteceu nos Andes não se presencia em situações normais, e por isso as pessoas querem sempre saber mais, para entender um pouco mais de si mesmas. “Intuitivamente, esperam que avancemos um pouco mais nessa experiência, para além da primeira abordagem, que de início gera surpresa, e logo depois o interesse pela história da sobrevivência, o fato de se alimentar dos mortos, como coisa curiosa, como quem vai ao zoológico observar animais raros.

Depois, quando veem que por esse caminho não chegam a lugar nenhum, pois esse olhar se esgota rapidamente, continuam a escavar para saber o que sentimos, o que sofremos. Mas agora, passados mais de trinta anos, houve uma mudança nessas expectativas. Vejo isso na repercussão de nossa página na internet, Viven, na grande quantidade de mensagens eletrônicas que nos chegam e nos intimam a contar não apenas o que fizemos, mas o que aprendemos, o que mudou em nós”.
 
Na montanha, ninguém se vangloriava de nada, de ter criado isso ou inventado aquilo, lembra a vítima, tudo era feito para o grupo, e não havia outra recompensa que não fosse o bem-estar do conjunto. E quando não existe ego, o seu corpo e a sua mente funcionam como um radar muito sensível, é possível absorver mais dos outros, do entorno, da natureza, eventualmente de uma força superior, Deus, que num ambiente como esse chega a você de outro modo, pois você não o deixa entrar quando está atribulado com as questões cotidianas da civilização.
 
“Quando se vive a ausência total de bens materiais, abre-se espaço para outras sensações, novos sentidos, que é o que procuro resgatar quando vou à montanha, pois sei que ao retornar à civilização vou voltar a perder esse sentimento ao menos em parte”, narra um sobrevivente.
 
Um depoimento extraordinário: “Quando o helicóptero me transporta no segundo dia de resgate, junto com a felicidade de sair dali, de voltar à vida, de regressar à família e aos amigos que tanto adorávamos, e em função dos quais nos mantínhamos vivos, tenho uma sensação de vazio no peito, como se tirassem de mim algo visceral. Ao observar a fuselagem cada vez menor, sozinha, pois fomos os últimos a partir, junto com a alegria fui acometido de uma espécie de nostalgia. É a sensação de abandonar um mundo em gestação, um processo que ainda não havia decantado e que nunca se solidificou, pois permaneceu inacabado”.
 
O QUE COMOVE
 
“Naqueles dias em que passamos nos alimentando de nossos amigos e companheiros que tinham morrido, eles nos davam a possibilidade de viver. Por isso sinto que a minha vida pertence a mim, sim, mas sinto também que pertence também a eles. Que o que eu faço ou deixo de fazer obedece também à vontade deles. E é claro que tento agir como se eles tivessem pedido para fazer assim, e em tudo o que fiz, faço e farei em minha vida, vou procurar com todas as minhas forças não falhar diante deles”, comove-se um deles.
 
Outro sobrevivente sente que os que se apaixonam por essa história captam alguma coisa de sua essência. “Captam algo a mais do que uma história de sofrimentos, proezas ou salvação. Uma mulher me mandou um e-mail dizendo: ‘A salvação de vocês não foi uma partida nos helicópteros, mas sim o momento em que o avião caiu e vocês ingressaram em uma outra vida’. No início não entendi ao que ela se referia. Mas por algum motivo esse texto ficou dando voltas na minha cabeça, e toda vez que o leio vejo uma perspectiva diferente. Na última vez em que o li, dei um sorriso de cumplicidade. Você tem toda a razão, pensei”.
 
Segundo outra pessoa que resistiu ao trágico acontecimento, foi apenas graças ao afeto que conseguiram sobreviver, pois não tinham nada além de um ao outro. “Erguemos do nada uma sociedade baseada apenas na amizade, abandonada no lugar mais frio do mundo. De quais elementos materiais dispúnhamos para sobreviver? Algumas latas de conserva e garrafas, os destroços de um avião, um rádio quebrado, algumas peças de alumínio, muitíssimo menos do que se pode encontrar nos mais sórdidos depósitos de lixo. Mas tínhamos uma vontade irracional de voltar a ver nossas famílias”.
 
Outra vítima conta que estava muito sozinha, não tinha intimidade com ninguém. E os que ela conhecia melhor estavam mortos ou muito feridos... “Ao meu lado havia um garoto, que eu nem conhecia, que me dizia: ‘Eu vou morrer de frio, não aguento mais, estou congelando’. Deitei-me então em cima dele, que era bem maior do que eu, e passei a noite sobre o seu corpo, golpeando-o, aquecendo um pouco suas costas. Ao nosso lado estava uma senhora moribunda, presa entre os ferros e as poltronas junto à cabine dos pilotos, que me estendia a mão. Nessa noite, tenho certeza, envelheci trinta anos. Aquele garoto ficou convencido de que nesse dia eu salvei sua vida, como escreveu numa das cartas dirigidas aos pais e à namorada, e isso criou um laço estreito entre nós até a sua morte. Mas sempre senti que ele estava enganado, e disse isso a ele. Eu não tinha salvo a vida dele, apenas começava a entender o que significava a ideia de afeto, para nos salvarmos mutuamente. Por isso, já no primeiro dia tive o amigo que me faltava na montanha, chegávamos até a dormir de mãos dadas dentro dos bolsos para mitigar o frio”.
 
Há alguém entre eles que relata: “De tanto conviver com a morte, tentávamos resgatar o que havia de melhor em cada um de nós, deixando de lado as fragilidades ou imperfeições que tínhamos, das quais nos despojávamos gradualmente, para morrer bem. E quando alguém fazia alguma bobagem, era chamado à atenção e admitia o erro no ato, corrigia-se na mesma hora, porque sentia o mesmo que você: não queria morrer mal, não queria que aquela família formada na fuselagem, formada pelos únicos seres vivos na face da Terra, ficassem com alguma recordação ruim, algo não resolvido, numa situação em que se podia morrer a qualquer momento. Ninguém queria morrer num estado de espírito atormentado, e isso fomentava a humildade, a camaradagem e a fraternidade, para se conseguir atingir um estado de espírito que considerávamos ideal, caso naquela noite ou naquela tarde chegasse a sua vez de partir. Não existe na sociedade civilizada, em nenhuma escola, em nenhuma faculdade, uma matéria que ensine como se deve viver para poder morrer bem”.
 
DESPERTANDO PARA O ESSENCIAL
 
Em suas reflexões, pensavam que ninguém está preparado para morrer. Quem já pensou nisso? “Quando se morre, levam-se consigo os afetos, as emoções da vida e nada mais, o corpo não leva nenhuma bagagem”, imaginam.
 
Alguém recorda que uma noite, na fuselagem, eles se perguntavam: “Se morrêssemos no dia seguinte, o que teríamos mudado na vida que vínhamos levando até então?” Ele lembra que era uma roda em que cada um dizia o que sentia, um de cada vez. “Alguns pediam que os saltassem, pois preferiam não falar. Um dizia que se arrependia de todas as brigas inúteis que tivera com a família, outro se arrependia de não ter dito muito mais coisas que tinha a dizer às pessoas que amava, outro lamentava ter se preocupado mais que o necessário, negligenciando o desfrute das pequenas coisas. Quando chegou a minha vez, eu disse que não teria nada a mudar, que achava que não tinha nenhuma pendência. E que se morresse naquele dia estaria tranquilo por ter feito tudo o que tinha que fazer”.
 
No conjunto dos relatos, o autor escreve que, se havia algo ausente na sociedade da neve, era a ideia de protagonismo.
 
“Nunca achei que a verdadeira história tenha sido realmente contada, a essência do que se passou”, observa um sobrevivente. Para ele, no livro “Os Sobreviventes” o autor não pôde subir à montanha, e por isso o texto conta os casos. “O que se dava do lado de fora, mas não o que ocorria dentro de cada um de nós. É um relato frio dos fatos. Mas quando não se conta o que acontecia dentro de nós, não se chega a conhecer a humildade, que é a essência da história”.
 
“Eu era uma espécie de ‘bispo”, que bela lição de outra vítima: “Isso não contei porque temia ser mal compreendido. Mesmo quando agia assim na montanha, não gostava que meus companheiros vissem, porque poderiam achar que eu tinha perdido a razão, como nos acontecia com tanta frequência. Quando alguém morria, eu sempre benzia, ministrava-lhe a extrema-unção, como se fosse um sacerdote. Não fazia isso para cumprir um ritual litúrgico, mas porque era preciso oferecer paz na morte ao falecido. Parecia-me imperioso que alguém dissesse: ‘Descanse em paz’. E como não havia ninguém para fazer isso, assumi a tarefa”.
 
CULPA E ALÍVIO
 
“A primeira coisa que aprendemos na montanha foi dizer a verdade: quando fomos resgatados, nos pediram para negar que tínhamos comido os corpos dos mortos. Éramos muito jovens, e gente de prestígio, com muito peso e que tinha lá suas razões, aproximou-se de nós dizendo: ‘Não contem isso’. Mas por quê? Se o que aflorou lá em cima foi respeito à vida, o respeito à morte, se o que aflorou naquele inferno foi o afeto, único antídoto capaz de dissolver parte daquela dor, como poderíamos descer para a vida e adotar como primeiro ato o de dizer uma mentira?”, manifesta um dos sobreviventes.
 
Ele diz também que, para cortar os corpos, era preciso se preparar psicologicamente. “Era preciso se blindar e chegar até a carne com um só pensamento: o que ficou aqui é apenas a casca, nosso amigo vive em nossas lembranças. Esse gesto era como o de ir a uma despensa buscar comida, sem que houvesse nenhum vínculo afetivo: era alimento. É muito forte e muito difícil dizer isso, mas foi necessário atingir esse patamar. Se não encarássemos dessa forma, não teríamos conseguido fazer o que fizemos”.
 
Outra pessoa explica ser impossível para a sociedade entender “que você se transforma numa rocha, que suas emoções ficam congeladas, pois ela não sabe o que é isso, nunca vivenciou essa situação e não foram inventadas palavras para explicá-la”. Para ela, “Não é a impotência que se conhece na vida comum, é de outro naipe, porque obriga você a se mover do mesmo jeito, apesar dos ossos quebrados que estalam no seu corpo”.
 
Um deles conta que quando deixavam de se tocar começavam a enlouquecer. Por isso é que dormiam abraçados, e não apenas por causa do frio. Era para enganar a solidão.
 
“Viva e honre minha memória”. Segundo outra vítima, os amigos que morriam em seus braços, e que além disso lhes entregavam seus corpos, lhes diziam isso. “E foi o que procurei fazer durante toda a minha vida. Espero ter feito isso bem”, diz com emoção.
 
Outro imagina que muita gente quer lhes escutar porque enfrenta situações que a sociedade não sabe como resolver, e essa gente quer saber como os sobreviventes dos Andes fizeram isso. “Vão ao médico ou ao psiquiatra, e estes lhes dizem: ‘A ciência consegue chegar até aqui, depois, não sabemos como será’. Elas querem escutar, porém o que esperam não é que passemos uma receita pronta, mas sim que contemos o que fizemos para não morrer...”
 
Há outra narração: “Quando me afastei da montanha, assim como tantos outros, tive sensações contraditórias. A felicidade de nos afastarmos daquele tormento e a nostalgia por deixar tudo o que havíamos vivido. Por isto, enquanto o helicóptero do resgate se afastava, eu chorava”.
 
EXEMPLO DE SOLIDARIEDADE
 
Todos os sobreviventes retornaram da tragédia capazes de enxergar o Universo sob uma nova perspectiva. Saíram da montanha com muito mais do que quando a ela chegaram, transformando-se em agentes do bem para a própria felicidade e a felicidade dos outros.
 
Um deles fundou o que é hoje um grande laboratório no Uruguai e uma de suas ações é a solução dos inúmeros problemas existentes no bairro pobre onde a companhia tem a fábrica instalada. Quando sai às ruas, os jovens o reconhecem e o saúdam como se fossem seus filhos, pois ele os ajuda desde pequenos. Conforme escreve Pablo Vierci, esse homem tem como obsessão inculcar neles os princípios nobres do rúgbi, o espírito de equipe e a qualidade de saber sofrer em silêncio para superar a adversidade.  
 
Muitas vezes, uma das vítimas se pergunta em que o desastre nos Andes a fez mudar. “Analiso um por um os que sobreviveram e chego a uma conclusão taxativa: ele nos transformou em lutadores, eliminou para sempre qualquer atitude de resignação”.
 
“Quando meus filhos ou os amigos deles me perguntam por que me salvei, respondo que os que morreram eram os melhores, porque Deus ou o destino não queriam que sofressem mais. Talvez seja  mera racionalização, mas é como sinto”, imagina uma das vítimas.
 
A VISÃO TRANSCENDENTAL
 
Na narrativa, um dos sobreviventes admira-se por ter conseguido extrair algo positivo daquela experiência tão lúgubre. Que, fugindo da realidade, possa ter caído sem querer na espiritualidade:
 
“Para vencer aquele sofrimento, que teria me levado à loucura em meio àqueles estados de delírio que sofri desde os primeiros dias do acidente, eu me voltei para dentro de mim mesmo em busca de alguma explicação, ou de uma saída, posto que no mundo exterior não só não havia nada que pudesse me ajudar como também ficava tudo cada vez mais nebuloso. Esse foi o método que adotei para evitar a demência: a ampliação da consciência, facilitada pela solidão e pelo sofrimento”.
 
E prossegue: “Ao mesmo tempo, quando analiso e penso no que está na base de todas as religiões, vejo que tudo estava presente na montanha. Em primeiro lugar a esperança, acreditar que existe uma saída, o que constitui o seu fundamento; a necessidade de perder o medo, que na cordilheira era um terror onipresente; a necessidade de se integrar ao absoluto, o que permitia afastar a mente do que estava mais próximo; a experiência mística, que sempre guarda um mistério que não se revela, e ali tudo era um enigma, a começar pelo nosso destino; os rituais ou mantras que produzem paz e equilíbrio, quando a mente se vê acossada continuamente pelo desequilíbrio e pelo caos, como o rosário noturno que rezávamos no avião; a sensação de que somos mais do que os nossos corpos físicos, o que permite enfrentar a morte de outra maneira”.
 
Ele exprime algo mais, após uma avalanche, quando achou que estava morrendo: “Até que essa aflição foi cedendo, sobreposta por um magnetismo que me arrastava para um outro estado, que me atraía física e espiritualmente para alguma coisa muito agradável, impossível de descrever. Desapareceram as imagens do passado e eu me vi sendo levado para algo maravilhoso, até que chegou um momento em que senti que estava morto”.
 
Muito tempo depois de seu retorno à Montevidéu, esse sobrevivente entendeu que o que tinha acontecido é que, sem nenhuma preparação anterior e sem saber o que acontecia, ele tinha vivido o que é chamado de “meditação”.

Na ocasião, conforme diz, ele desconhecia que a meditação permite controlar as tensões da vida e ao mesmo tempo atingir um melhor funcionamento do nosso organismo, porque reduz a respiração, consome-se menos oxigênio e o ritmo metabólico diminui. “Lá em cima não havia oxigênio, estávamos extremamente fragilizados e precisávamos reduzir o metabolismo ao mínimo imprescindível para continuar vivos. A meditação combate o estresse, e o que era aquilo que vivenciávamos 24 horas por dia se não estresse em seu mais alto nível? Todos os elementos necessários para entrar nesse estado especial de relaxamento estavam presentes na montanha. Estimulado pela minha predisposição em relação a essas sensações, meu mecanismo de defesa apontou para essa direção”.

“É difícil definir a sociedade da neve que criamos nos Andes. À primeira vista pode parecer uma comunidade pré-histórica e selvagem em um ambiente rústico e malcheiroso”, revela. Ele diz que muitos podem achar, como já aconteceu, que formavam uma sociedade desumana, onde o animal se fez presente e sufocou o homem.
 
“Embora na aparência possa parecer que vivemos abaixo dos padrões humanos, fomos mais humanos que nunca. Deixamos de lado todo o mundo material e nos aproximamos de nossa essência, enriquecemos o espírito e nossos dons como seres pensantes funcionaram ao máximo. Um grupo de moribundos semicongelados e famélicos, que ignoravam totalmente onde estavam, abraçando-se para não morrer de frio, sem contar com nenhum outro elemento além do afeto e da inteligência, encontrou a saída, tanto a física quanto a espiritual”, analisa.
 
Há algo ainda registrado por Pablo Vierci, de acordo com uma das vítimas: “No que se refere à forma de usar os cadáveres, nós agimos de uma maneira que antecipou muita coisa. Hoje, décadas depois, quantas pessoas assinam documentos que estabelecem que quando morrer seus órgãos devem ser doados para que outros possam viver”.
 
A partir de agora, quando oportuno, darei “A Sociedade da Neve” de presente a amigos que cultivam o hábito da leitura. E também vou sugerir a outros que façam o mesmo. 

Para concluir, devo afirmar que após a leitura dessa obra não sou mais o mesmo. Evoluí sensivelmente em minha capacidade de observar e entender o mundo.
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Revisão do texto: Márcia Navarro Cipólli, navarro98@gmail.com

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