quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Memórias de uma gueixa – O Japão dos anos 1930 a 1940




Ana Simões (*), estudante do curso de Pós-graduação em Crítica de Cinema, Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), outubro 2009

O livro, ‘best-seller’ internacional, “Memórias de uma Gueixa”, de Arthur Golden, atraiu a atenção de Steven Spielberg, que comprou os direitos para a adaptação ao cinema. Ao lado de Rob Marshall (do musical Chicago) e de outros célebres e antigos colaboradores do cinema, Spielberg produziu o longa, que teve um orçamento de 85 milhões de dólares.

O resultado foi um belo retrato do Japão dos anos 1930 a 1940: uma nação poética, rica em elementos culturais que a diferenciam – e a distanciam – de qualquer outro lugar do mundo. Se, a princípio, o filme parece não ir além de um melodrama de visual multicolorido, com trama rasa e previsível, com um pouco de mergulho na história do Japão é possível reconhecer em sua narrativa todo um pano de fundo documental que relata uma das mais belas e antigas tradições do Japão: as gueixas. Se as personagens parecem, algumas vezes, meras integrantes de uma paisagem, sem alma e sem conteúdo, pode-se apostar que Marshall tenha usado tal artifício para retratar a realidade dessas mulheres que eram privadas da identidade e do amor.

O universo das gueixas, já anteriormente retratado em obras como ‘Madame Butterfly’ e ‘Miss Saigon’, é cercado de mistério e fascínio. As gueixas são, até hoje, muitas vezes confundidas com prostitutas. Essa percepção errada se espalhou com mais força no Ocidente, a partir do século XX, quando o Japão abriu seus portos às potências ocidentais e pôs fim a um isolamento comercial e cultural que durou mais de 200 anos. Outro fato que contribuiu para a propagação, ainda que errônea, da cultura das gueixas no Ocidente foi a ocupação norte-americana no Japão após a Segunda Guerra -  época de miséria, em que muitas mulheres se autodenominavam gueixas ao vestir um quimono e vender seus corpos pelos dólares vindos do outro lado do Pacífico.

Gueixas são “pessoas das artes”. Elas são fundamentais na história do Japão, uma vez que mantêm vivas as suas artes tradicionais e personificam o que há de mais belo na alma do país. O seu surgimento tem muito a ver com a maneira pela qual a sociedade japonesa foi organizada durante a Era Edo (1603-1867). Sob um rígido controle do Governo, as mulheres tinham de se limitar a executar os papéis de mãe, esposa e dona de casa, sendo proibidas de exercer qualquer profissão. Isoladas da sociedade, não participavam da atividade cultural do país e, tampouco, se divertiam. Os casamentos, por sua vez, eram arranjos de interesses entre famílias, e não uniões por amor. Nesse contexto, não é difícil de imaginar o porquê da procura dos homens japoneses pelas gueixas, mestras na arte de entreter. Educadas, cultas, elegantes e belas, elas preenchiam um papel que era negado às mulheres japonesas comuns.

É nesse Japão que o filme conta a história de Chyio. Com apenas nove anos, a menina é vendida pelos pais a uma casa de gueixas tradicional de Tóquio, em 1929, prática comum naquela época entre as famílias pobres, que precisavam reduzir o número de bocas para alimentar.

Assim que chega ao estabelecimento, Chyio logo se torna alvo de Hatsumomo, que vê na jovem menina de olhos cinza-azulados o risco de perder sua posição de gueixa mais cobiçada da casa. Relegada ao papel de escrava após uma tentativa frustrada de fuga, Chyio volta a sonhar em ser uma gueixa apenas mais tarde, quando vê despertar seu amor por um homem mais velho que conhece sob uma das pontes da cidade: o Presidente. Retrato do homem de alto-escalão do próspero Japão pré-Guerra, o Presidente apresenta-se a Chyio acompanhado de duas gueixas – atitude que lhe conferia “status” e poder.

Decidida a reencontrá-lo, a menina resolve então fazer o que pudesse para se tornar uma gueixa como as moças que acompanhavam o seu amor. E é sob a tutela de uma gueixa experiente, que a adota com o objetivo de torná-la a gueixa mais lucrativa da região, que Chyio torna-se uma maiko (nome dado à gueixa aprendiz). Passa a se dedicar a aulas de dança, canto, música, literatura e à prática de uma etiqueta que mudará seus modos, gestos e até sua linguagem corporal, para alcançar o padrão de elegância que se espera de uma gueixa. À noite, frequenta festas e banquetes para entreter os convidados e observar atentamente as gueixas experientes.

É assim que nasce Sayuri, nome dado à Chyio quando ela se torna uma gueixa e revela seu talento na elegância, na beleza discreta e na sensualidade insinuada. No entanto, seu amor não parece ter o mesmo bem sucedido final: devido a um Japão prestes a entrar na Segunda Guerra e ao rígido código das gueixas, o amor de Sayuri revela-se impossível.

O filme foi um sucesso comercial nos EUA: tornou-se o quinto mais visto no país. Por outro lado, a crítica japonesa parece não ter se rendido ao filme,  chegando a considerá-lo uma obra "para inglês ver", cheio de caricaturas que refletem uma imagem ocidentalizada e distorcida do Japão e das gueixas.

As críticas japonesas começam com a entrega dos papéis das principais gueixas a atrizes não japonesas - uma escolha de elenco provavelmente ditada pela perspectiva de melhores bilheterias no Ocidente. Ao fazerem esta escalação, os norte-americanos demonstraram falta de sensibilidade em relação a uma rixa Japão “versus” China, que remonta à Segunda Guerra Mundial.

Embora a produção do filme tivesse procurado retratar de modo fiel o Japão dos anos 1930 a 1940, houve decerto alguns desajustes, como, por exemplo, a sequência da dança solo de Sayuri, inspirada em uma dança contemporânea que surgiu no Japão apenas a partir da década de 1970.

Outra observação refere-se à maquiagem das gueixas no filme. Uma gueixa de verdade não usa “blush” nas bochechas - maquiagem tradicionalmente considerada bela no Ocidente e na China, mas não no Japão, onde pintar as bochechas, que só se tornou moda por influência ocidental no século XX, nunca foi adotado pelas gueixas.

Em que pesem os desajustes técnicos, ‘Memórias de uma Gueixa’ tem méritos inegáveis, a começar por uma trilha sonora perfeitamente trabalhada. A música dá ritmo a cada fotograma do filme e parece carregar a história dramática da protagonista, ao se misturar com seus sentimentos e dar voz aos seus mais secretos desejos.

A iluminação, com uso abundante de sombras que reforçam o caráter misterioso daquelas mulheres, e as imagens, que procuram mesclar tons de vermelho, azul e amarelo dentro de cada tomada, garantem um visual uniformemente multicolorido e vistoso. Ao longo do filme, o espectador é constantemente presenteado com cenários de grande beleza onírica, e cada cena não deixa de ser uma autêntica pintura que retrata a antítese do que foi o Japão antes e após a Segunda Guerra.

Há que se considerar, antes de tudo, que o filme é uma história de ficção escrita por um ocidental, o que serve de desculpa para certos exageros cometidos em nome da dramaticidade e da natureza comercial - e não documental - do filme. 

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(*) Este texto é de autoria de minha filha, Ana Simões. O blog não é exclusivo do Tom. Ele está aberto a outras participações, como forma de enriquecer e diversificar o seu conteúdo.

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